Outra crónica

Paulo Varela Gomes

Um país lindo

(in Público, 05/12/2009)

“Portugal tem paisagens lindas. E também tem monumentos lindos, aldeias e cidades lindas. Toda a gente sabe isto, desde as alturas etéreas da academia e do gosto onde pontificam historiadores de arte como o abaixo-assinado até ao cidadão médio, passando necessariamente pelo operador turístico, no cerne de cuja profissão, tal como na do mecânico de automóveis ou do vendedor de seguros, está a capacidade de mentir sem hesitação. Tornou-se uma evidência socialmente partilhada que vivemos num país lindo, cheio de arte e arquitectura identicamente lindas.

Há cento e tal anos, porém, a elite pensadora portuguesa não pensava nada disto. Pensava frequentemente o contrário: que Portugal era um país vulgaríssimo no que respeita à paisagem e que não tinha arte ou arquitectura que merecessem menção. Havia meia dúzia de monumentos de relevo e até o decantado manuelino não passava de uma derivação – aliás grosseira – do gótico tardio internacional. A elite desse tempo (historiadores como Joaquim de Vasconcelos, etnólogos como Rocha Peixoto) pensava estas coisas porque comparava Portugal com outras regiões da Europa que conhecia bem. Era uma elite cosmopolita, tinha amigos entre a gente mais culta do mundo de então e achava as coisas portuguesas lamentavelmente pobres e, do ponto de vista estético, medíocres. Havia por essas coisas um interesse exoticamente etnográfico. Investigavam-se as habitações do Marão, por exemplo, como as de São Tomé e Príncipe, e com idêntica condescendência.

Isto começou a mudar a partir do final do século XIX. A ascensão do nacionalismo tornou menos confortável dizer-se que o país não valia nada do ponto de vista paisagístico ou arquitectónico. Passou por isso a valorizar-se o que havia. Os ideólogos mais capazes do Estado Novo continuavam a apreciar antes de mais os grandes monumentos mas, como os ideólogos liberais ou republicanos, encontravam poucos no país em comparação com aquilo que viam em Espanha ou em França. Basta ler-se a melancolia que espreita por detrás dos louvores com que o esplêndido historiador da arte Reinaldo dos Santos enaltecia as pequenas igrejas rurais de estilo românico. À falta de beleza ou magnificência, porém, os nacionalistas encontravam identidade nos edifícios e na paisagem portugueses. Iniciativas como o concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal de 1938 vinham enaltecer essa compensação identitária para o deficit monumental.

A partir das décadas de 1950 e 1960, a esquerda juntou-se aos cultores da identidade: as elites progressistas deixaram de aceitar a ideia de que a arte e a paisagem devessem ser julgadas do ponto de vista dos centros dominantes e começaram a valorizar a arte popular, regional e periférica. Em Portugal, arquitectos e etnólogos descobriram os encantos das aldeias e das casas que horrorizavam os seus colegas de algumas décadas atrás. Foi assim que se criou o estado de espírito com que hoje, todos juntos e a uma só voz, exclamamos que vivemos num país lindo. Muito lindo.”

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