Paulo Varela Gomes
Preto e Branco
(in Público, 13/11/2010)
“Converso por vezes com um amigo acerca da sua infância nos anos de 1980. É filho e neto de camponeses e dedica-se hoje a ofício diferente, embora ainda ligado à agricultura. Na época antediluviana em que era criança, ia a pé para a escola primária, descalçando os sapatos para passar a vau ribeiras cheias no Inverno. Embora não tenha saudades nenhumas daquele tempo em que era pobre e trabalhava duramente com a família, consegue recordar com prazer muitas histórias de brincadeira e riso, daquelas que compõem a vida de todas as crianças.
Pelo contrário, uma vizinha bastante mais antiga que ele tem saudades da juventude de há 50 anos. Lembra-se da aspereza da vida no campo, mas faz-lhe falta o que então havia e hoje já não há: muita gente, homens e mulheres que se juntavam para o trabalho do campo, a vindima, a apanha da azeitona, parando de vez em quando para uns copos de vinho ou pão com chouriço. “Aquilo era outra coisa, outra alegria”, diz ela, apesar de a aldeia não ter luz e os miúdos andarem rotos pela rua.
Lembro-me sempre, a este e outros propósitos, da ocasião em que assisti a uma exibição pública do famoso documentário Portugal: Um Retrato Social de António Barreto e Joana Pontes (2007). Os espectadores não tinham tido qualquer experiência directa de Portugal ou do período salazarista. As imagens, a preto e branco, passavam diante deles mostrando um país triste, oprimido, pobre. Às referências à miséria, ao subdesenvolvimento, à repressão somavam-se, talvez para tornar a coisa mais expressiva, frivolidades sobre o comprimento obrigatório das saias das raparigas ou a licença necessária para se ter isqueiro. A pobreza e a ditadura não bastaram aos autores do documentário; foi ainda preciso sugerir que se vivia numa opressão e tristeza permanentes.
Comecei a ficar seriamente irritado e saí da sala, não fosse ter que intervir no debate que se seguiu à projecção para dizer que aquilo era uma demagogia pegada e que a vida das pessoas nos anos de 1960 e início da década de 1970 não era nada a preto e branco. Por incrível que pareça, Portugal era a cores. Até eu, o meu irmão, as minhas irmãs, com o pai preso depois de uma tentativa de golpe anti-salazarista da qual saiu à beira da morte, a mãe também presa, uma vida material muito difícil, até eu tive dias e noites de praia, namorei, ouvi música pop, dancei naquilo que na altura se chamavam boîtes, usei o cabelo comprido e roupas extravagantes, fumei charros, tudo isso no Portugal salazarista ou caetanista. Até eu tive momentos de felicidade, e não foram poucos, embora fosse muito menos pobre que os pobres, esses, que também tiveram momentos de felicidade.
O que me irrita em histórias do passado como a daquele documentário e outros semelhantes é a redução da dureza da vida a uma história para assustar crianças, insultuosa para as pessoas que sofreram de facto essa dureza, mas também para as outras, tratadas como espectadores tontos de uma história da qual a visão a preto e branco retira toda a verdade.”