(artigo originalmente publicado em 2011 no Diário do Sul)
Aos 42 anos, não me recordo de uma figura portuguesa, ainda viva, com a qual me tenha identificado tanto. Há, é verdade, Vasco Pulido Valente e Miguel Esteves Cardoso, a quem devo o gosto pela arte da crónica jornalística, um género literário tão pouco valorizado em Portugal, mas que, lá fora, foi apurado até à perfeição por gente como H. L. Mencken, Michael Wharton, Auberon Waugh, Jeffrey Bernard ou o recentemente falecido Christopher Hitchens. Refiro-me a algo de mais profundo ou, como está na moda dizer-se, abrangente: não apenas o estilo ou a forma, mas a disposição, o saber e a graciosidade. Refiro-me a Gonçalo Ribeiro Telles.
Sempre admirei, em Gonçalo Ribeiro Telles, a capacidade para «falar mais alto» sem (nunca) levantar a voz; de ser inconformista sem ser revolucionário; de ser original sem ser «modernista»; de «estar a ver o filme» quando, à sua volta, ninguém fazia a mais pálida ideia do que se passava; de ser coerente sem ser dogmático; de perceber que estava certo renunciando à altivez, à arrogância ou ao punho cerrado; de ser capaz de olhar para a árvore sem esquecer a floresta, e vice-versa.
A sua originalidade parte de um dom raro: a capacidade para avaliar, de forma integrada e em perspectiva (passada e futura), o meio que o rodeia, nas suas mais diversas expressões: cultural, rural, arquitectónica e social. A sua visão crítica, mas paciente e desassombrada, da relação (de eterna conflitualidade) entre o homem e o território que sempre amou – alicerçada no princípio da preservação da unidade da paisagem, enquanto atributo da sua diversidade e beleza, e num profundo conhecimento da realidade – fez dele um homem sempre à frente do seu tempo. Os princípios que hoje consideramos como adquiridos, nas áreas da ecologia e do ambientalismo, foram postulados várias décadas antes por Gonçalo Ribeiro Telles.
Mas, como bem recordou Miguel Esteves Cardoso, Gonçalo Ribeiro Telles não foi apenas «o» jardineiro: foi, e continua a ser, o mais original dos filósofos políticos portugueses, remetendo-nos para o mais original e inclassificável dos filósofos ingleses do século XX: Michael Oakeshott. Em Gonçalo Ribeiro Telles, encontramos a «disposição conservadora» de que nos falava tão sabiamente Oakeshott no ensaio «On Being Conservative»: a defesa do regresso a escalas mais humanas; a apologia do belo em detrimento do «brutalismo»; o apelo à lealdade inter-geracional como ponto de partida fundamental para a conservação do legado natural, sem colocar em causa as reformas necessárias; a justa e precisa noção do carácter contingente das relações de equilíbrio entre o homem e o meio natural; a inclinação para a conservação e fruição do presente, em detrimento do corte abrupto, a maior parte das vezes irreparável, tão ao gosto das vertigens e urgências neotéricas (assépticas e acéfalas); a forma sábia como fazia notar as correlações vitais e as interdependências orgânicas entre os mais diversos elementos (os solos, a flora, a hidrologia, o património edificado…). «As preocupações são duráveis», como lembrava Guilherme de Oliveira Martins, na recente homenagem a Gonçalo Ribeiro Telles, organizada pelo Centro Nacional de Cultura e pela Fundação Calouste Gulbenkian (organização a cargo da Arq. Aurora Carapinha). Coisa que inquietava mas simultaneamente apaixonava e motivava este sage. Um homem bom, que teve sempre razão antes de tempo. Talvez por isso, continue, ainda hoje, a inquietar a ignorância estabelecida.