Ele há questões terríveis. Daquelas que nos resgatam do sono bestial do enfartamento senil. O momento político – meu Deus: o momento político! – é propício a que abruptamente nos desviemos da ladeira fatal da melancolia acabrunhada a que nos entregámos, em parte para tratar da vidinha, em parte por acharmos não ter mais nada a acrescentar ao que milhões de portugueses, carregados de «convicções» (malaise nacional), acrescentam diariamente.
À conversa com amigo chegado (maximum affinitatem, acho que é assim que se escreve), achei-o desiludido e descontente com a exaltação da tese da «vacina», que parece fazer tolerar um governo sustentado numa «frente popular de esquerda» na secreta esperança de o ver ruido e vexado lá mais para a frente. Confessei-lhe simpatia pela tese. Daí que acabasse a vislumbrar na minha pessoa «anseios» (leia-se: desejos) de ver erguida a dita «frente popular de esquerda», constitucionalmente caucionada e empossada, foi um passo – a que não será alheio o conhecido efeito espasmódico provocado pela ingestão de iguarias nascidas, pastoreadas e calibradas no sopé da Serra d’Ossa por gente sem convicções (bem-haja.)
Não é bem assim, meu caro Alberto.
As coisas são o que são. Perante uma derrota humilhante, o Dr. Costa entendeu oportuno e sensato insistir na humilhação convocando os partidos derrotados a formar um «bloco» maioritário no parlamento, alicerçado em «acordos» (os que forem necessários) politicamente legítimos (so they say) e organicamente capazes de garantir as benditas «condições de governabilidade».
Descontando o leve aroma a usurpação, e a maravilhosa galeria de flic-flacs de geometria variável a que temos assistido, propus-me compreender que é chegada a hora de responsabilizar a esquerda e o seu eleitorado, sobretudo a extrema-esquerda e o seu eleitorado, pelo que sempre disse e pelo que sempre se propôs fazer. As ilusões e os erros vão-nos parecer necessários quando os observarmos relacionados num encadeamento fatal de causas e efeitos, sob pena de continuarmos a alimentar, no vazio e em abstracto, a sempiterna superioridade moral de uma casta de ungidos que invariavelmente se diz vítima e incumprida.
Não, Alberto: não se trata de «ansiar» ou desejar uma «frente popular de esquerda» liderada por esse estupendo hino à mediocridade política chamado António Costa, cuja concordância singular dos discursos e actos leva a notar. Não se trata de desejar macabramente o estrondoso falhanço, que julgo inevitável, de uma solda lassa, politicamente arrivista e incoerente. Há crookedness a mais nesta madeira, para que dali saia algo de genuinamente bom e duradouro.
Mas as coisas são o que são. Dito de forma diferente: vamos ter de passar por isso. Não creio que a ideia da «vacina» implique ou signifique a capitulação dos «princípios» pela «estratégia». O governo liderado por Passos Coelho foi, apesar do simbolismo, um governo marcadamente iliberal. Qualquer liberal com um palmo de memória e um módico de mundo, cujo princípio «quero que o Estado me deixe em paz» lhe seja simpático (é o teu caso), não pode ter deixado de sentir vergonha pelo que assistiu nos últimos quatro anos. E, contudo, «estrategicamente» aí os vemos a apoiar o novo governo do Dr. Passos Coelho. Por exclusão de partes? Com certeza. Pelos princípios? Não creio. Em política, a «estratégia» nunca foi prejudicial aos bons costumes, nem envergonhou ou matou ninguém. O Auberon Waugh dizia que a principal razão que o levava a escolher os Conservadores era «a general preference for the devil one knows over the devil one doesn’t know.» No plano político-pragmático, deixemos o apego cego e desmesurado aos «princípios» para os radicais. Não troco a minha reles «estratégia» pelo histerismo e pelo tremendismo que a hoste de direita parece ter adoptado, por estes dias. Um decalque, aliás, bacoco do tradicional histerismo de esquerda. Não me revejo nos assombramentos de um «comunismo latente», do género «barbarians at the gate.» Para o bem e para o mal – neste caso, mais para o bem do que para o mal – Portugal está integradíssimo nesse grande feudo neo-liberal-capitalista denominado «ocidente». Está fatalmente condicionado por uma teia de regras, princípios, compromissos e dependências que o impedem de espernear. Não creio que o chico-espertismo do Dr. António Costa, de pôr o BE e o PCP no saco para aceder ao poder e assim salvar a face (alguém ainda não lhe explicou que o BE e o PCP estão precisamente a tentar o mesmo), traga tragédias indizíveis ao país. Trará, provavelmente, mais um resgate, mas de resgates sabemos nós. E trará, certamente, tempos interessantes, sobretudo a uma esquerda esclerosada e anacrónica (ironicamente pejada de «jovens»), que só aprenderá, se é que aprenderá, desta forma.
O país pode dar-se ao luxo de uma brincadeira ou de um intermezzo lúdico-burlesco? Provavelmente, não. Mas as coisas são o que são.