Jardim da Estrela, tarde de Domingo soalheira. Junto ao parque infantil, um jovem pai dá pela presença de um animal e avisa a criança de cinco anos: «Olhe, Miguel: um pato.» A criança entra num registo de estupefacção, próprio de quem acabou de ver uma versão zombie do Noddy montada num tigre-da-tasmânia. Ali ao lado, num dos guardanapos de relva que pincelam a paisagem, decorre uma private birthday party, com direito a bandeirinhas, balões, musiquinha infantil e avós confusos. Ao largo e em movimento, uma criatura fantástica conduz uma bicicleta repleta de gadjets: discos compactos colocados entre os raios das rodas; no cesto frontal, encabeçado por um papagaio postiço, um ruidoso leitor de cassetes alimentado por uma descomunal bateria de 12 V, debita música dos Alphaville; na rectaguarda, um engenhoso mastro ostenta uma bandeira do Benfica. Junto ao quiosque, um grupo de hipsters dedica-se à encenação do que parece ser um pic-nic hipster. Do lado oposto, sentada num banco de jardim, uma idosa dá colo a um enorme cão. A posição do cão projecta de forma graciosa a cabeça deste no corpo da idosa, numa simbiose perfeita. Granny-mutt. De resto, e por todo o lado, o bendito betuminoso.
Mal que pergunte: por que razão anda a Câmara Municipal de Lisboa a pavimentar os jardins da cidade (sendo o caso mais recente o do Príncipe Real) com betuminoso? Que mal terá a terra, o pó, aquela crosta branda do solo que o homem pisa há milénios, e onde habitualmente germinam plantas e habitam pequenos organismos multicelulares, como formigas, besouros, lagartixas, minhocas?
Será a aborrecida derrapagem da roda da bicicleta? Será a acidental lama que conspurca os imaculados New Balance? Será a tonalidade heterogénea ou o aspecto «sujo» e «descuidado» que afugenta o turista? Serão as poças com o seu insuportável efeito splash? Será o «desconforto» de uma textura áspera e imprevisível, favorável à queda dos petizes? Serão os «custos de manutenção»?
Pouco importa que o betuminoso garanta «extrema porosidade», uma cor «inócua» e perfeitamente «integrada», um «remate» esmerado aliado a uma linearidade perfeita. Uma cidade obcecada em fazer desaparecer dos seus espaços verdes qualquer nesga de terra, de solo «em bruto»; uma cidade obcecada em combater o «irregular» em nome de um ideal de perfeição ergonómica; uma cidade interessada em acrescentar e acumular camadas de recursos e mecanismos que nos separem, paulatinamente, do que supostamente é incerto, desigual e contingente, em nome de um ilusório sentimento de segurança e previsibilidade; uma cidade capaz de nos povoar a mente de paisagens marcadamente postiças; uma cidade assim é uma cidade doente. Pior do que isso: dirigida por idiotas.