Qualquer pessoa que acumule consciência da sua existência neste calhau e perceba o alcance dos vocábulos «democracia», «liberdade» e «tolerância», não pode deixar de sentir um calafrio quando observa as imagens de agentes da autoridade a obrigar uma muçulmana a despir a sua indumentária numa praia francesa (curiosamente, na Promenade des Anglais).
Tirando o efeito da ocultação do rosto (casos extremos e inaceitáveis da burka e do niqab) ou o da conflagração de matéria provocada por um cinto ou colete de explosivos, parece não haver um só argumento racional, equilibrado e justo, que sustente a prerrogativa do Estado poder obrigar um cidadão a despir determinada peça de roupa (podemos fazer a piada de que estaríamos abertos a uma excepção nos casos do sr. Goucha ou do sr. Herman José, but the jury should disregard such a jest). É assim que, em democracia, e de acordo com os valores que (a Ocidente) nos são queridos e que reputamos de superiores, funcionamos.
Dito isto, só uma pessoa muito distraída, um idiota útil ou um fanático às avessas poderá: a) pretender encerrar a discussão nos termos acima apresentados; b) desatender ao facto de o burkini, tal como a burka e o niqab, estar intimamente ligado ao carácter profundamente misógino de uma doutrina (religiosa e política) potencialmente totalitária, adoptada por um Islão «extremista» (vamos dar de barato que o Islão «moderado» existe e que os «moderados» do Islão «moderado» são absolutamente contrários às práticas extremistas dos «extremistas» do Islão «extremista»). Quer se goste, quer não se goste, o burkini, a burka ou o niqab são divisas de uma ideologia que promove a inaceitável humilhação e opressão das mulheres. É bastante provável que as mulheres muçulmanas adoptem aqueles dress codes contra a sua mais íntima vontade. E isso exige, desde logo, uma discussão.
Valerá a pena forçar a proibição de uma indumentária prescrita e imposta por uma lei religiosa discriminatória e subjugadora das mulheres, ou por encontrarmos nela uma carga simbólica que nos causa repulsa? Justificar-se-à desconsiderar uma aparente liberdade de escolha (usar o burkini), por estarmos muito certos de que de «liberdade» essa escolha pouco ou nada terá? Será útil e pertinente, aqui e agora, optar por uma política de «tolerância zero» em relação a toda e qualquer manifestação pública que aparente sustentar-se no extremismo e no fanatismo, deixando o Estado traçar, a régua e esquadro, algumas «linhas vermelhas»? Desta espécie de laicidade compulsiva poderá sair algo de bom?
Não sei. Temo que a resposta a todas estas questões seja «não.»