iCondemn

Na vara do tribunal unipessoal onde acumulo as funções de juiz, meirinho e advogado de acusação, acabo de condenar o intelectual at large Rui Tavares a escrever mil vezes no seu caderninho de anotações a frase «não voltarei a omitir factos de modo a obter dividendos.»

A condenação acontece no dia seguinte à publicação de um artigo de opinião cujo título («Uma pouca-vergonha»), ao contrário do que parecia indicar, não se ocupava do preço das sardinhas mas da indignação de que foi acometido Rui Tavares depois de se ter debruçado, sem cair, sobre «o caso Apple».

Rui Tavares fez uma coisa feia, daí a condenação: da primeira à última linha do artigo, esqueceu-se de referir o que deu a Apple em troca desde 1980 (ano em que se instalou em Cork.) Quem lê o artigo e não conheça a história, poderá chegar à conclusão de que a Apple, com a conivência do estúpido do governo irlandês e nas barbas da ingénua União Europeia, foi ali roubar 13 mil milhões de euros às «escolas e hospitais, jardins e bibliotecas, pensionistas e desempregados, à ciência e às energias renováveis» (sic). Pior ainda: ao «investimento público e [prepare-se, caro leitor, vem aí a parte mais divertida] para o estímulo ao emprego.» Para o «estimulo ao emprego»?

Em 1980, a Apple abriu uma fábrica em Cork, na Irlanda, empregando 60 pessoas. Trinta e quatro anos depois (2014), a Apple empregava em Cork cerca de 4.000 pessoas e era indirectamente responsável por mais cerca de 2.500 empregos. Até 2017, a Apple estima aumentar para 5.000 o número de empregados directos na Irlanda.

Estão a ver aquela coisa da globalização? Estão a ver aquele fenómeno caracterizado pela livre circulação de pessoas, mercadorias e conhecimento, que tem conduzido à deslocalização de centros tecnológicos e de produção do primeiro mundo para o segundo e terceiro mundos, com nefastas consequências nos índices de emprego e crescimento económico do primeiro? A Irlanda – país onde exercem funções políticos e empresários que felizmente mantêm intactas as faculdades intelectuais clássicas – entendeu que podia e devia reverter essa tendência, atraindo investimento externo, privado, de dimensão adulta e tecnologicamente avançado. Para tal, assumiu, de forma legítima e soberana, um trade-off: impostos vs. emprego + formação + qualificação. O resultado está à vista: a economia irlandesa cresceu 26% em 2015. Em 2012, a taxa de desemprego atingia os 15%. Hoje, está nos 7,8%.

Seria bom que o intelectual at large Rui Tavares expusesse todos os factos, independentemente de concordarmos ou não com as suas conclusões (até podemos, no fim, juntar indignações.) Um verdadeiro intelectual sabe que tem esse dever.

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One thought on “iCondemn

  1. Pita diz:

    Nada a ver com o post, mas a ver consigo,
    Tenho estado a reler o seu anterior blog. É um gosto!
    Após um interlúdio, que espero ter sido de plena saúde, tem vindo a “recuperar” a sua escrita.
    Obrigado
    ea

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