Vai longo o seriado de meretrício intelectual que a generalidade da nossa intelligentsia esquerdista, num tom ora pesaroso, ora indignado, decidiu levar à cena sob a batuta do samba Dilma, querida, que golpada, hein?
A argumentação atingiu um nível que tolera bem o epíteto «medíocre», oscilando entre o condescendente («ora, ora, no passado todos fizeram o mesmo»), o diferenciador («os que a acusam são piores do que ela») e o absolvidor («o que Dilma fez não é crime.») O corolário deste arrazoado barato seria, na prática, aceitar como admissível mascarar as contas públicas de um país («punível» única e politicamente nas urnas) e bloquear todo e qualquer processo de impeachment enquanto subsistisse nos hemiciclos uma percentagem (a fixar em portaria) de congressistas ou senadores indiciados por corrupção.
Parece não valer a pena lembrar que o PT foi o campeão dos pedidos de impeachment; que este processo, como os anteriores, seguiu escrupulosamente as regras constitucionais (não houve golpe coisíssima nenhuma); que muitos dos que, agora, «desculpam» Dilma, são os mesmos que, no passado, rasgaram as vestes quando um longo consolado de governos «neoliberais» ou «pseudo-socialistas» gregos, fizeram o mesmo com a ajuda da Goldman Sachs; muito menos reforçar que o impeachment é um instrumento político que serve para apurar a responsabilidade, por grave delito ou má conduta no exercício de funções, de quem desempenha altos cargos da nação (não exige, nunca exigiu, um crime de sangue ou um outro qualquer enquadrável numa «moldura penal»). E será totalmente inconsequente sugerir que este processo pode vir a ser vital na composição de um esquisso de consciência ética que contribua para estancar a sem-vergonhice de uma casta de políticos que pelo voto se acham legitimados em recorrer a qualquer meio para alcançar os seus fins.
Para desempoeirar o ambiente e deitar abaixo as grilhetas que impedem diálogos abertamente francos, devíamos escolher a verdade em detrimento de uma confortável omissão: a de estarmos na presença de um prosaico caso de trincheira ideológica. Se Dilma fosse uma Maria Luis Albuquerque «neoliberal», pró-germânica e amiga do «rodinhas nazi», a esquerda em peso estaria vergada à infinita rectidão, legalidade e justiça do instituto do impeachment.
Será o sr. Temer de outra estirpe? Talvez não. Com ou sem Dilma, esta discussão é, acima de tudo, fútil. É óbvio que o impeachment não salvou o Brasil de nada. Mas teve o (pequeno) mérito de fazer abanar uma cultura política que há muito deixou aninhar no seu colo o compadrio, o amiguismo, as relações malsãs entre o poder político e o poder económico, com o PT na vanguarda desta perversão.