So long, Mariana

Devemos a Mariana Mortágua o momento mais franco e ternurento da política portuguesa dos últimos anos. A clareza e a franqueza chegaram-nos pelo verbo: «devemos perder a vergonha de ir buscar dinheiro a quem está a acumular dinheiro». A ternura pôde ser observada na forma como alguns socialistas (sobretudo os afectos à juventude turca) tentaram acalmar as hostes: «calma, amiguinhos, isto pode ser explicado.»

As coisas são o que são. A voz delicodoce, o olhar arguto e o sorriso monalisiano de Mariana Mortágua parecem num primeiro momento consolar a nossa inquietação perante as injustiças do mundo, mas uma vez debitado, o ideário Mortágua desengana os menos incautos. Tudo é claro, límpido, inequívoco: estamos perante uma gema marxista, impenetrável e inflexível.

Imaginar uma conversa com Mariana Mortágua sobre teorias de propriedade ou diferentes concepções de justiça distributiva – dos princípios «históricos» aos de «resultado final» dissecados por Nozick, passando pela teoria da aquisição de Locke e por aí fora  – resultaria numa pequena e certamente divertida representação teatral do absurdo, com o bom senso e o consenso no papel de Godot.

No mundo de Mariana não interessa saber como, em que circunstâncias (por exemplo, se o «acumulador» já percorreu uma fileira sacra de tributos), quando e quem acumulou «dinheiro»: quem o fez, fê-lo certamente à custa de outrem. 1 € ganho por A significou 1 € perdido por ou roubado a B. A «acumulação» será sempre senão ilícita, no mínimo injustificável e imoral, contrária à consumação do preceito-mor: de cada qual, segundo as suas capacidades; a cada qual, segundo as suas necessidades.

É no mais central, distinto e chique bairro do seu cérebro que Mariana preserva e mantém intacta a sua cosmovisão do mundo, habitada pelos bibelôs marxistas da praxe: a infraestrutura e a super-estrutura; o lucro (a vil essência do capitalismo); as teorias do valor, salário e da mais-valia; a taxa de lucro e a sua relação com a composição orgânica do capital (capital variável vs. constante); as proposições referentes à proletarização e à pauperização, demonstrativas do devir auto-destrutivo do regime capitalista; e por aí fora.

Do alto dos seus Converse All Stars, Mariana acredita piamente que o capitalismo tenderá para a cristalização das relações sociais em dois únicos grupos: capitalistas (também conhecidos no mundo de Mariana como «acumuladores») e proletários (os alienados e miseráveis). As classes intermédias jamais terão iniciativa nem dinamismo histórico – como, aliás, profetizava Marx.

Mas ao contrário de Marx, para quem o poder político e o Estado eram os meios pelos quais a classe dominante («acumuladora») mantinha a sua dominação e exploração sobre o proletariado (logo, entidades a abater), Mariana Mortágua acredita que não será necessário suprimi-los, antes apetrechá-los de um exército de justos e «corajosos» (do qual ela faz indubitavelmente parte) que não terão vergonha alguma em «retirar dinheiro a quem acumula.»

Que Mariana Mortágua seja isto, não me surpreende. Que o PS caucione estas intervenções, já me causa alguma estranheza. Ou não passo eu de um incorrigível ingénuo.

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One thought on “So long, Mariana

  1. pita diz:

    Mal vão as coisas quando a ingenuidade é incorrigível. E digo-o por própria experiência. É como “cada enxadada sua minhoca”.
    Abraço, grato pelo texto, do Colega

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