A perder qualidades desde…

Consta por aí que tenho abusado da complacência e da candura; que a sinecura me amoleceu e me afastou do escopo; que perdi o norte (e me entreguei ao sul); que brinco com assuntos tremendos; que corro sérios riscos de invertebração; que tardo em inscrever-me nas perplexidades da vida política moderna; que pareço parvo e forrado do mesmo. Anda gente desconfiada à minha volta.

O respeitável Rui Ramos avisa-me: o meu divertimento comprova a incompreensão da «doutrina das etapas» do PCP e do BE.

Ouço «doutrina das etapas» e estremeço. Confesso-me assustado. Sinto-me não recomendável. Era criatura para me inscrever num aggiornamento doutrinário que me espicaçasse a verve e me pusesse em sentido. Em contrapartida, concubinei-me com a bonomia e encaminho-me para o opróbrio.

Vamos falar a sério? Ok.

Ao certo, ao certo, pretendiam o quê? Um bloco central prontinho a servir a estratégia da extrema-esquerda, que cavalgaria a onda com o populismo troglodita que a caracteriza e contribuiria decisivamente para a pasokização dos partidos moderados?

Um governo minoritário de direita que, como está bom de ver, passaria agora a ser tratado com respeito e boa-fé, em conversas «francas», reuniões «construtivas» e convergências «desinteressadas», no mais são e escandinavo ambiente parlamentar?

Um Presidente que chumbasse o(s) arranjinho(s) e, de caminho, lançasse o país numa batalha campal, estendendo o tapete à estrondosa e insuportável vitimização da «esquerda destratada»?

Uma sublevação do Regimento de Lanceiros? Um pronunciamento militar de cariz patriótico?

Como diria Oliveira Martins, «noutras terras, com outra gente, havendo melhor sangue, mais juízo e maior critério», poderíamos falar do que seria se fosse.

Resta-nos isto. E o beaujolais.

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Estiquemos o argumento

Pode o governo de um país ocidental – democrático; respeitador e protector das liberdades individuais; com um Estado organizado em torno do princípio da separação de poderes; capaz de dar ao mundo um ou dois Reis Novais – ter como muleta um partido que histórica e doutrinariamente caucionou regimes totalitários e ainda hoje se engasga perante a pergunta «o que foi o gulag»?

Pode. É embaraçoso? É. Vem daí mal ao mundo português? Depende do alcance da muleta.

O Dr. Costa considera honroso e glorioso o afago prístino do Sr. Jerónimo de Sousa? Na medida em que a perspectiva do abismo é a mãe do engenho, sim. Lá no fundo, não. Nas baças regiões que o Dr. Costa habita, o despotismo do hábito há muito ditou a táctica: estabelecer do modo mais prático o domínio sobre a substância – leia-se: o poder – através de uns arranjinhos (neste caso, três) utilitários. Na sua agudeza transcendente, e de empurrão em empurrão, o Dr. Costa tratou da vidinha. Nada o incomoda ou demove.

O resultado prático deste engendramento retirará, por uns tempos, o PCP da modorra, colocando-o na confluência da «interdependência»? Assim parece. A Dr.ª Catarina Martins poderá, finalmente, declamar odes a um publico mais vasto, dispensando o jambé? Lá terá de ser. Assistiremos ao regresso da doutrina do «animal feroz»? É já evidente. É uma coisa que nos chateia? Claro que sim.

Mas: e o perigo vermelho?

Entendamo-nos. Por muitos temores que a figura rebelde e revolucionária de um Dr. Lacão nos possa suscitar, não creio que as sementes de um comunismo tardio estejam, neste momento, em avançado estado de germinação nos canteiros altaneiros do Largo do Rato. Não creio que o Dr. Costa saiba quem foram Babeuf ou Blanqui, ou esteja interessado na colectivização dos meios de produção. Não creio que professe a ideia de que a acumulação do capital é produto de um sistema de desumanização dos trabalhadores. Não creio que conforme a ideia de moralidade às condições do sistema produtivo. Não creio que opte pela «expropriação dos expropriadores.» Saiu-nos na rifa um prosaico with a stingy cunning plan, não um rei-filósofo with a master plan. Para o bem e para o mal, tudo saiu e sairá poucochinho.

Devemos estar atentos? Sem dúvida, embora a parede já se aviste. Não troco o estrondo por nada deste mundo.

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Estou maravilhado

Instigado a comentar as declarações de Jerónimo de Sousa, escutei, há minutos, o Dr. Manuel Alegre num pungimento de fazer chorar as pedrinhas da calçada. No meio do bric-à-brac político-ideológico em curso, as cenas remetem para um clássico português: primos desavindos por causa da herança de uma tia sovina ou da deficiente partilha de um poço em terrenos contíguos, reencontram-se, ao fim de décadas, para pôr fim à contenda que ditou o corte e alimentou a acrimonia, o ressentimento e o desprezo. A prole de ambos pode, finalmente, conhecer-se, abraçar-se e alambazar-se ao lanche. Resta saber quando e quem fará o papel do cônjuge desconfiado e astuto que, a seu tempo, assinalará a falha e desmascará a farsa.

Até lá, temos festa.

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Notícias da Marmeleira

Na Quadratura do Círculo (o programa com a música de genérico mais irritante da história das músicas de genérico), o Dr. Pacheco Pereira decidiu denunciar o suposto «carácter extremista» do governo recorrendo a um exercício miserável: a) associou o blogue O Insurgente ao governo (género «câmara de ressonância» ou «correia de transmissão»); b) colectivizou o post do Hélder Ferreira, tomando-o como editorial (oficial) do blogue; c) esqueceu a latitude de tom e de estilo que a escrita em blogues tolera (à esquerda e à direita); d) tentou fazer passar a ideia de que só à direita, sobretudo a direita próxima do governo, ocorrem excessos de linguagem; e e) submeteu o exercício da liberdade de expressão ao critério da sua particular discordância (o regresso do delito de opinião.)

O Dr. Pacheco é um homem inteligente. Mas é, também, um espectacular caso de prostituição intelectual ao ódio e ao rancor. Talvez a expressão «putedo rasca» tenha reverberado demasiado tempo na sua cabeça, ao ponto do insuportável. Não sabemos. O que sabemos hoje, e parece estar clinica e solidamente comprovado, é isto: demasiados anos a estudar o comunismo, deixam a pessoa de bem sem pingo de sentido de humor; tornam-na obcecada em urdiduras, esquemas e conspirações; potenciam exercícios de insulto à inteligência alheia; impregnam as meninges de azedume; e, last but not least, conferem à fácies uma expressão de cãozinho molhado. Tirando esta última parte, tudo é desaconselhado.

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Um redondo equívoco

Ele há questões terríveis. Daquelas que nos resgatam do sono bestial do enfartamento senil. O momento político – meu Deus: o momento político! – é propício a que abruptamente nos desviemos da ladeira fatal da melancolia acabrunhada a que nos entregámos, em parte para tratar da vidinha, em parte por acharmos não ter mais nada a acrescentar ao que milhões de portugueses, carregados de «convicções» (malaise nacional), acrescentam diariamente.

À conversa com amigo chegado (maximum affinitatem, acho que é assim que se escreve), achei-o desiludido e descontente com a exaltação da tese da «vacina», que parece fazer tolerar um governo sustentado numa «frente popular de esquerda» na secreta esperança de o ver ruido e vexado lá mais para a frente. Confessei-lhe simpatia pela tese. Daí que acabasse a vislumbrar na minha pessoa «anseios» (leia-se: desejos) de ver erguida a dita «frente popular de esquerda», constitucionalmente caucionada e empossada, foi um passo – a que não será alheio o conhecido efeito espasmódico provocado pela ingestão de iguarias nascidas, pastoreadas e calibradas no sopé da Serra d’Ossa por gente sem convicções (bem-haja.)

Não é bem assim, meu caro Alberto.

As coisas são o que são. Perante uma derrota humilhante, o Dr. Costa entendeu oportuno e sensato insistir na humilhação convocando os partidos derrotados a formar um «bloco» maioritário no parlamento, alicerçado em «acordos» (os que forem necessários) politicamente legítimos (so they say) e organicamente capazes de garantir as benditas «condições de governabilidade».

Descontando o leve aroma a usurpação, e a maravilhosa galeria de flic-flacs de geometria variável a que temos assistido, propus-me compreender que é chegada a hora de responsabilizar a esquerda e o seu eleitorado, sobretudo a extrema-esquerda e o seu eleitorado, pelo que sempre disse e pelo que sempre se propôs fazer. As ilusões e os erros vão-nos parecer necessários quando os observarmos relacionados num encadeamento fatal de causas e efeitos, sob pena de continuarmos a alimentar, no vazio e em abstracto, a sempiterna superioridade moral de uma casta de ungidos que invariavelmente se diz vítima e incumprida.

Não, Alberto: não se trata de «ansiar» ou desejar uma «frente popular de esquerda» liderada por esse estupendo hino à mediocridade política chamado António Costa, cuja concordância singular dos discursos e actos leva a notar. Não se trata de desejar macabramente o estrondoso falhanço, que julgo inevitável, de uma solda lassa, politicamente arrivista e incoerente. Há crookedness a mais nesta madeira, para que dali saia algo de genuinamente bom e duradouro.

Mas as coisas são o que são. Dito de forma diferente: vamos ter de passar por isso. Não creio que a ideia da «vacina» implique ou signifique a capitulação dos «princípios» pela «estratégia». O governo liderado por Passos Coelho foi, apesar do simbolismo, um governo marcadamente iliberal. Qualquer liberal com um palmo de memória e um módico de mundo, cujo princípio «quero que o Estado me deixe em paz» lhe seja simpático (é o teu caso), não pode ter deixado de sentir vergonha pelo que assistiu nos últimos quatro anos. E, contudo, «estrategicamente» aí os vemos a apoiar o novo governo do Dr. Passos Coelho. Por exclusão de partes? Com certeza. Pelos princípios? Não creio. Em política, a «estratégia» nunca foi prejudicial aos bons costumes, nem envergonhou ou matou ninguém. O Auberon Waugh dizia que a principal razão que o levava a escolher os Conservadores era «a general preference for the devil one knows over the devil one doesn’t know.» No plano político-pragmático, deixemos o apego cego e desmesurado aos «princípios» para os radicais. Não troco a minha reles «estratégia» pelo histerismo e pelo tremendismo que a hoste de direita parece ter adoptado, por estes dias. Um decalque, aliás, bacoco do tradicional histerismo de esquerda. Não me revejo nos assombramentos de um «comunismo latente», do género «barbarians at the gate.» Para o bem e para o mal – neste caso, mais para o bem do que para o mal – Portugal está integradíssimo nesse grande feudo neo-liberal-capitalista denominado «ocidente». Está fatalmente condicionado por uma teia de regras, princípios, compromissos e dependências que o impedem de espernear. Não creio que o chico-espertismo do Dr. António Costa, de pôr o BE e o PCP no saco para aceder ao poder e assim salvar a face (alguém ainda não lhe explicou que o BE e o PCP estão precisamente a tentar o mesmo), traga tragédias indizíveis ao país. Trará, provavelmente, mais um resgate, mas de resgates sabemos nós. E trará, certamente, tempos interessantes, sobretudo a uma esquerda esclerosada e anacrónica (ironicamente pejada de «jovens»), que só aprenderá, se é que aprenderá, desta forma.

O país pode dar-se ao luxo de uma brincadeira ou de um intermezzo lúdico-burlesco? Provavelmente, não. Mas as coisas são o que são.

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“It’s widely claimed that it was W.C. Fields who uttered the immortal words ‘Never guive a sucker an even break’, but it isn’t so. God murmured them during an afternoon nap on the seventh day.”

Jeffrey Bernard

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“Penetrei na impropriamente chamada meia idade desta maneira: ou seja, aflito. O céu caiu-me em cima sem aviso. Nestas crises, segundo o costume, as pessoas agarram-se: à família, ao trabalho, às ambições. Reparei que os meus amigos se agarravam. Um a um, consoante a sua natureza, transformaram-se em secretários de Estado, políticos respeitáveis, académicos triunfantes, altos funcionários ou pais extremosos. Vários preferiram a virtude, ideológica ou sexual. Com meritórias excepções, quase todos se encaminharam. Mas precisamente eu não pretendia encaminhar-me. Deus sabe que eu nunca fui assim.”

Vasco Pulido Valente

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