Rule, Britannia

Devo ser dos raros portugueses que ficou mais ou menos indiferente ao processo de referendo no Reino Unido. Abstive-me de dar palpites e de entrar na animadíssima roda de papalvos que entendeu dar indicações ao povo britânico sobre como deveria votar e vociferar contra os que discordavam das suas orientações. Por duas ordens de razão. A primeira: não sou britânico. A segunda: não sou ninguém.

Se fosse britânico, provavelmente teria votado «remain». Mas isso interessa coisa nenhuma.

O resultado foi, entretanto, conhecido. Os britânicos votaram, maioritariamente, no «leave». Uma escolha feita em liberdade, de forma democrática e expressiva. Como é, aliás, um hábito naquelas paragens há uns aninhos (centenas, acho).

Em Portugal começaram, entretanto, os desmaios, o histerismo e o particular desconforto de algumas alminhas para quem o voto popular é muito aborrecido e desagradável quando o resultado lhes é «antipático».

O Dr. Rui Tavares, por exemplo, está que não pode. É com grande expectativa que se espera, a todo o momento, a reacção oficial do partido Livre.

I can hardly wait.

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Próxima paragem: plantas artificiais

Jardim da Estrela, tarde de Domingo soalheira. Junto ao parque infantil, um jovem pai dá pela presença de um animal e avisa a criança de cinco anos:  «Olhe, Miguel: um pato.» A criança entra num registo de estupefacção, próprio de quem acabou de ver uma versão zombie do Noddy montada num tigre-da-tasmânia. Ali ao lado, num dos guardanapos de relva que pincelam a paisagem, decorre uma private birthday party, com direito a bandeirinhas, balões, musiquinha infantil e avós confusos. Ao largo e em movimento, uma criatura fantástica conduz uma bicicleta repleta de gadjets: discos compactos colocados entre os raios das rodas; no cesto frontal, encabeçado por um papagaio postiço, um ruidoso leitor de cassetes alimentado por uma descomunal bateria de 12 V, debita música dos Alphaville; na rectaguarda, um engenhoso mastro ostenta uma bandeira do Benfica. Junto ao quiosque, um grupo de hipsters dedica-se à encenação do que parece ser um pic-nic hipster. Do lado oposto, sentada num banco de jardim, uma idosa dá colo a um enorme cão. A posição do cão projecta de forma graciosa a cabeça deste no corpo da idosa, numa simbiose perfeita. Granny-mutt. De resto, e por todo o lado, o bendito betuminoso.

Mal que pergunte: por que razão anda a Câmara Municipal de Lisboa a pavimentar os jardins da cidade (sendo o caso mais recente o do Príncipe Real) com betuminoso? Que mal terá a terra, o pó, aquela crosta branda do solo que o homem pisa há milénios, e onde habitualmente germinam plantas e habitam pequenos organismos multicelulares, como formigas, besouros, lagartixas, minhocas?

Será a aborrecida derrapagem da roda da bicicleta? Será a acidental lama que conspurca os imaculados New Balance? Será a tonalidade heterogénea ou o aspecto «sujo» e «descuidado» que afugenta o turista? Serão as poças com o seu insuportável efeito splash? Será o «desconforto» de uma textura áspera e imprevisível, favorável à queda dos petizes? Serão os «custos de manutenção»?

Pouco importa que o betuminoso garanta «extrema porosidade», uma cor «inócua» e perfeitamente «integrada», um «remate» esmerado aliado a uma linearidade perfeita. Uma cidade obcecada em fazer desaparecer dos seus espaços verdes qualquer nesga de terra, de solo «em bruto»; uma cidade obcecada em combater o «irregular» em nome de um ideal de perfeição ergonómica; uma cidade interessada em acrescentar e acumular camadas de recursos e mecanismos que nos separem, paulatinamente, do que supostamente é incerto, desigual e contingente, em nome de um ilusório sentimento de segurança e previsibilidade; uma cidade capaz de nos povoar a mente de paisagens marcadamente postiças; uma cidade assim é uma cidade doente. Pior do que isso: dirigida por idiotas.

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O meu presidente

Portugueses,

Tomo hoje posse como presidente da república portuguesa.

Contrariando o que tem sido propalado por antigos presidentes da república, ou por proeminentes figuras da república quando convocadas a discursar em dias solenes, gostaria de vos dizer o seguinte: não esperem grande coisa de Portugal, na exacta medida que o país não esperará grande coisa de vós.

Portugal é um país pequeno, sem grandes recursos, povoado por gente de capacidade muito desigual, embora na sua maioria medíocre. Gente mais ou menos avessa ao trabalho, mais ou menos avessa ao estudo e ao rigor, gente mais ou menos habilidosa, gente mais ou menos talentosa. Não tenham, por isso, ilusões: não fomos, não somos, não seremos nada de especial.

A classe política, da qual eu faço parte e constituo um bom exemplo, gozando da eterna complacência do povo que supostamente deveria servir, tem sido invariavelmente miserável. Não porque tenha origem numa coutada marcada por problemas de consanguinidade, e por isso propensa à idiotia, ou por ser portadora de um particular gene da estupidez. Acreditem no que vos digo: por detrás de um político medíocre ou fraco, escondem-se dezenas, centenas de portugueses igualmente medíocres e fracos.

Não acreditem quando vos disseram que temos um problema de falta auto-estima. Não temos. A haver um problema, será de excesso: excesso de auto-estima e de auto-confiança, que nos conduz invariavelmente a achar que “o que é nacional é bom”; excesso de verborreia e lero-lero, que nos leva a confiar cegamente na bondade da palavra, no carácter salvífico das convicções e a presumir que, com tanto diagnóstico, nada poderá falhar; excesso de bazófia e de orgulho, embevecidos pelo paleio das “bolsas de excelências” ou embriagados pelos relatos que nos dizem: lá fora, somos o máximo.

Não vos trago, anuncio ou prometo a salvação. Não há salvação possível, porque nada há a salvar. As coisas são o que são. O orgulho que nos poderia proporcionar a longínqua memória de um Portugal glorioso, de nada nos poderá servir, na medida em que a perspectiva mítica de uma nação nunca foi motor de coisa nenhuma. Do passado, tentemos preservar o património tangível que nos foi legado e não estragar o que, apesar de tudo, teima em perdurar. Já seria muito bom, portugueses.

Estamos, em suma, entregues a nós próprios: áquilo que fazemos ou não fazemos, decidimos ou não decidimos, assumimos ou não assumimos, numa escala que é muito mais atómica do que propriamente colectiva.

Portugal não é “obra de todos”. Deixemo-nos de tretas: “Portugal” não existe. Se vos disserem o contrário, estarão a mentir. Boa sorte.

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O caso Raposo (yawn)

Após dezenas de cartas, faxes e telegramas, e de um solitário email que li de soslaio mas cuja primeira frase («Se vieres a Évora este fim-de-semana traz bacalhau de cura amarela») me leva a crer versar sobre a família Raposo, atrevo-me, por fim, ao habitual e popular exercício de comentário politico-sociológico – breve e simplório, comme il faut – sobre o tema do momento: Henrique Raposo e o Alentejo (e vice-versa).

Sobre o caso, cuja gravidade envolve já a mui nobre policia de segurança pública (destacada que foi a comparecer no sempre estimulante evento desportivo olímpico do «lançamento de livros», neste caso possivelmente apetrechada com sensores de bolota), apraz-me dizer o que se segue.

O Henrique Raposo cometeu um erro simplista, muito comum em povos idealistas e imaginativos, provenientes de países exíguos, genética e historicamente estabilizados: achar que os 92.212 km2 que nos calharam em sorte seriam capazes de albergar bolsas regionais idiossincráticas, carregadas de traços psicológicos e sociológicos de grande contraste, cada uma produzindo uma linhagem de seres de comportamento distinto (nalguns casos espectacular e/ou bizarro), merecedoras de um opúsculo sobre hábitos autóctones e de umas declarações definitivas num programa sobre «irritações» (do inglês «rash»).

Muitos dos traços que o Henrique Raposo identifica nos «alentejanos» (e vamos continuar a acreditar que existe essa raça), chegaram ao conhecimento do Henrique em modo «mítico» e sobretudo por interposta pessoa (via testemunho familiar de alentejanos há muito deslocados, ou através de entrevistas que o Henrique Raposo levou a cabo durante algumas semanas.) O conhecimento de facto e in loco do Henrique Raposo provém, por isso, de incursões pontuais e fugazes a terras alentejanas. E isso nota-se.

A prova de que o conhecimento do Henrique sobre o «Alentejo» e os «alentejanos» é deficitário – partindo do duvidoso princípio de que é possível adquirir um conhecimento irrepreensível, certeiro e definitivo sobre «os alentejanos, «os transmontanos», e por aí fora – é facilmente identificável na forma como particulariza a generalização tomando como próprio de alentejanos comportamentos, tiques ou costumes que encontramos amiúde e com facilidade um pouco por todo o país «interior» – ou como os lesboetas gostam de referir: na «província.»

Em bom rigor, o problema do Henrique não está no conhecimento deficitário do «Alentejo» e dos «alentejanos»: está no desconhecimento daquilo a que comummente se denomina de «país real.»

A bestialidade e a rudeza de modos; a tacanhez e a timidez; os preconceitos e os tabus (os novos e os velhos); a propensão para o conformismo e para o fatalismo; a disposição para a suspeição e para a mesquinhez; um certo orgulho regionalista indutor de coisa nenhuma (quase sempre instrumental e do agrado dos caciques); são características difusas e transversais ao povo português (e, já agora, à humanidade em geral) – mais diluídas, metamorfoseadas ou domadas nas grandes cidades; mais acirradas ou concentradas no interior.

O «grande» contraste – se quisermos apelidar de «grande» o que na realidade, no caso português, é modesto – deverá ser encontrado em duas levas: a) entre o interior (o interior da solidão associada ao isolamento; da maior falta de instrução; da falta de meios; da população envelhecida) e o litoral (o litoral dos grandes aglomerados populacionais, cosmopolita e «miscigenado»); b) entre as populações marcadamente rurais e as consolidadamente urbanas.

Sempre, aliás, assim foi.

O Henrique sente-se claramente desapontado com o «Alentejo» e eu compreendo-o. Quem viveu quarenta anos da sua vida em Évora, certamente não esquecerá o que é viver quarenta anos da sua vida em Évora: a inveja mesquinha; o moralismo hipócrita; o maniqueísmo e a mediocridade de boa parte da intelectualidade eborense; a permanente desconfiança em relação a quem ousa estar bem com a vida; o bota-abaixismo; as brincadeiras alarves e tontas; o clientelismo anão dos amigalhaços e funcionários do partido; a estupidez intestina da prole falida dos latifundiários, adepta do touro e da incivilidade; e por aí fora.

Quem viveu quarenta anos da sua vida em Évora, com família espalhada por diversas vilas e aldeias alentejanas, também sabe que por lá encontrou, e ainda hoje encontra, gente genuinamente boa, decente, desempoeirada e livre, que fez da boa-fé, da simplicidade e de uma inocência já perdida, um modo de vida.

Acima de tudo, quem se mantém vivo há mais quarenta anos e tem passado boa parte da sua existência no corredor interior, sabe duas coisas. A primeira: há gente tímida, medrosa, burra e estúpida em todo o lado. A segunda: não é possível criar uma teoria geral sobre a população de uma determinada região de Portugal. Por muito pouco interessante que esta conclusão resulte.

PS: Quanto ao suicídio, deixo a resposta que o meu pai, alentejano de 73 anos, me deu quando lhe perguntei ‘por que razão os alentejanos são mais propensos ao suicídio?’: «porque, provavelmente, são mais inteligentes.»

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Pândegos

“Do you pray for the senators, Dr Hale?”

“No, I look at the senators and I pray for the country.”

Edward Everett Hale

As rádios portuguesas têm sido proliferas em programas de humor. No passado recente, destacaram-se programas como Mixórdia de Temáticas (Rádio Comercial), Portugalex (Antena 1), Tubo de Ensaio (TSF) e Bloco Central (TSF).

O Tubo de Ensaio, entretanto falecido, representava o género «insult comedy» e servia de exercício de catarse a uma espécie de Robespierre sans moyens chamado João Quadros – criatura de obsessões («o Cavaco», «o Passos», «a direita») e ódios clinicamente certificados. Foi, durante anos, tolerado pela estação a conselho de médicos e criminologistas. Salvaram-se vidas, o que já não foi mau.

O Bloco Central, ainda no ar, é um fino exercício da denominada «comédia de enganos» onde duas mentes diametralmente opostas no que toca à ideologia, habitando corpos distintos, tentam enganar o auditório fazendo-se passar por uma unidade anatomicamente indivisa. O resultado é notável.

Recentemente – para ser mais específico: a semana passada – descobri um outro programa humorístico, também na TSF, a que deram o nome de Pares da República. Novamente no registo «comédia de enganos» (muito querido à TSF), e com claras referências ao saudoso Yes Minister, o programa simula diálogos entre supostos «senadores» da República (leia-se figuras de referência política e moral, de uma respeitabilidade a toda a prova), em tom ponderado, calmo e cordato, intermitentemente interrompido por hilariantes tiradas do mais puro nonsense, nalguns casos a roçar a infantilidade (género «oh mãe, prefiro o Chocapic à sopa de hortaliças»), provocando no auditório um desconcerto que tem tanto de cómico como de lúdico.

No programa que tive a felicidade de escutar, a personagem que se fazia passar pela dra. Maria de Lurdes Rodrigues (a imitação da voz estava perfeita, o que me leva a crer que há por ali dedo, ou melhor, corda vocal do Luís Franco-Bastos) afirmava, num estilo assertivo e levemente impaciente, «a austeridade é de direita!, a despesa pública é social-democrata, de centro-esquerda!» Neste excerto, o efeito humorístico foi especialmente conseguido porque, proferida a traquinice, seguiu-se um «silêncio de senadores» apenas interrompido pelo (suposto) moderador, que deu por terminado o programa. Uma maravilha.

Em matéria de humor, a produção portuguesa está imparável. À atenção do dr. Rocha Andrade (da personagem ou da figura real.)

(publicado originalmente aqui)

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Pátria incerta

Adeus Goa

Ah sim, são tão ridículos aí, vocês e o vosso futebol, a vossa política de anedota que mete pena a toda a gente, o vosso falhanço quotidiano, a vossa incapacidade de ser alguma coisa que não simpáticos, o desprezo condescendente com que olham para vós, tão pequeninos e tão tristes nesse ridículo rectângulo de economia falida, sociedade amarga, cultura de empréstimo, entregue a esse ridículo destino de pertencer a essa União de falhados. Eu, enquanto aqui estive, senti-me distante desse pântano em que Portugal só existe para campeonatos de futebol. Eu, aqui, fui português. Não fui, como vós aí, a lembrança apagada de um passado que não merecem, de uma história que não reconhecem, de um presente que aceitam como carneiros. Eu, aqui, estive com gente que me recorda que podíamos ser outra coisa, que eu (e vocês aí) podíamos ser outra coisa, que Portugal podia ser alguma coisa em vez do último da União, essa porcaria em que vocês vivem e me envergonha. Sei que é assim porque de cada vez que um jovem português vem a Goa e aqui presta atenção diz-me que nós, os mais velhos, lhe roubámos a história e lhe legámos um país ridículo e não o país para que os de cá olham, o país que foi.

Aqui em Goa há quem pense que não somos um país ridículo, há quem pense em nós e pense em séculos. Pergunto: há mais alguém que pense em nós assim? No mundo inteiro? A quem deve Portugal a sua existência no mapa simbólico do mundo? Porque é que, no mundo inteiro, nos conhecem? Não é por causa do futebol. Não é sequer por causa do Brasil. É por causa da Índia. Devemos à Índia a nossa existência simbólica. A nossa principal obrigação colectiva não é para com essa União. Não é para com nada nem ninguém antes de ser para com os portugueses e amigos de Portugal que deixámos na Índia. Devemos-lhes tudo. Em particular, devemos-lhes a única, última, maior razão que temos para nos respeitarmos a nós próprios: graças a eles, houve um tempo em que existimos.

Adeus Goa (e Damão, e Diu, e Cochim, e Baçaim…). Muito obrigado. Não te merecemos. Peço desculpa em nome de todos os meus compatriotas e dos meus governantes que te abandonam ou te esquecem por causa do mais desprezível dos valores, o realismo. Para te merecer, deveríamos fazer muito mais pelo ensino do português na tua terra, muito mais pela tua literatura, a tua arte, a tua música, a tua gente, devíamos tratar-te como a jóia da nossa coroa. Peço-te desculpa pela nossa fraqueza.

E saúdo-te em nome de todos os nossos que te amam. Não somos muitos, cidadãos de todos os dias, algumas fundações, alguns esforçados funcionários do Instituto Camões, alguns diplomatas amorosos de ti. Mas é em nome de nós que te escrevo, estes que não te esquecem, te querem mais do que tu te queres a ti própria, te respeitam mais do que tu te respeitas a ti própria, os que não desistem de ti. Não para reclamar a tua posse mas para, em ti, recuperarmos a grandeza que nos escapou um dia, sabe-se lá porquê.

Paulo Varela Gomes
Público, Agosto de 2009

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Tão fofinho, o elefante

Muito catita a carta aberta que o cidadão e blogger de boa cepa e velha guarda, Daniel Carrapa, dirigiu ao João Miguel Tavares.

É um caso em que o palavroso «simplismo» retórico do João Miguel Tavares tolera bem o coloquial «estava mesmo a pedi-las.»

(A propósito: o João Miguel Tavares e o Henrique Raposo, cada um no seu estilo, formam o par de articulistas mais visceralmente odiado pela horda da esquerda nas redes sociais. É sempre uma diversão acompanhar o espargir de decalitros de verborreia insultuosa sobre estas pobres criaturas, num exercício em que o odioso destrona com alegre convicção qualquer lampejo de boa-fé e tolerância, não vá a contenção verbal rimar com pusilanimidade. Temo pela saúde de todos.)

Com dizia: muito catita. Mas, lamento informar o Daniel Carrapa, não deixou de conter o já clássico mega-buraco argumentativo que a malta (sem ofensa, por favor) de esquerda insiste em cavar quando se debruça sobre estas matérias. É aquilo a que alegremente podemos chamar de «ângulo morto argumentativo»: empurra-se para a discussão uns quantos acontecimentos com peso e poder de estrondo (meu Deus, como pode alguém desdizer uma coisa chamada quantitative easing? Ou esquecer os malandros de Wall Street?); entremeia-se de forma elegante um conjunto de factos de teoria monetária que qualquer aluno de Economia aprende ainda no ensino básico (podem ler-se aqui); polvilha-se a coisa com um suave e leve bouquet ufano de quem não faz concessões a «contas de merceeiro» (côrror!); tudo isto na secreta esperança de que se venha a produzir o salvífico e inefável «ângulo morto» que subtraia o elefante.

E o que é o elefante? Coisas aparentemente «mesquinhas»: um nível de endividamento externo dos mais elevados da Zona Euro (entre 2004 a 2009 a dívida externa líquida cresceu «apenas» 76,8%); uma dívida augustamente nutrida por um continuum (muito pontualmente interrompido) de défices orçamentais elevados, mascarados comme il faut por via da desorçamentação (com especial destaque para os negros anos de 2009 e 2010); uma dívida pública à qual foi administrado um valente suplemento alimentar a partir de 2005, não fosse a dita esmorecer; níveis de crescimento e produtividade sub-anémicos (servidos por um «tecido» industrial ralo e quebradiço, mais frágil do que a credibilidade de Miguel Relvas.)

Pelo meio, há uma leve e cordata referência ao paquiderme, recorrendo-se ao inefável «não está em causa», que é como quem diz «eu estou a ver o filme todo, atenção.» Escreve o Daniel Carrapa: «não está em causa ignorar as responsabilidades dos governos que seguiram políticas de expansionismo imprudente, colocando os seus países numa circunstância de perigosa vulnerabilidade.» Pois não: «não está em causa», mas quanto ao «expansionismo imprudente» nem uma palavra. É como se, enfim, a questiúncula estivesse ao largo do tremendismo das questões importantes (urdiduras internacionais incluídas). Uma circunstância interna, transitória, sem peso ou significado relevante. Um aborrecimento a ser facilmente afagado pela intendência indígena, e sem correlação com o financiamento da economia portuguesa ou a posição desta no mundo.

Também não houve tempo nem palavras para o período em que foi aplicado o programa de ajustamento, também conhecido por «programa da troika» ou, nas palavras do sr. Jerónimo de Sousa, «pacto de agressão.» Como se o programa fosse: a) inócuo; e/ou b) redentor; e/ou c) amiguinho; e/ou d) eficaz em quatro aninhos; e/ou e) culpa do governo que foi obrigado a aplicá-lo.

O resultado do exercício é muito satisfatório quando comparado com o «engraçadismo» (recorro ao mestre Pacheco Pereira) baço e paternalista do texto do João Miguel Tavares. Mas o elefante continua lá. E se o João Miguel Tavares carrega na ponderação das «causas internas» (leia-se: pratica amor com o elefante), o Daniel Carrapa aponta as baterias às «causas externas» (leia-se: foge do dito para não acabar esmagado.)

Entre um e outro? Sinceramente, passo.

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Tenham juízo

O mais recente queixume da comunidade afro-americana (que podemos designar como «blacks not winning enough Academy Awards»), não deve surpreender ninguém. Há muito que, sob a capa da auto-rectidão, os auto-proclamados ora ungidos, ora mártires, se propõem restabelecer a ordem e a justiça no mundo.

Refiro-me depreciativamente a «queixume», porque não é a primeira, nem será a última vez que alguém em nome de um grupo ou de uma «comunidade» (racial, religiosa, cultural ou social), erra o alvo ou incorre em reivindicações patetinhas, mesmo que instaladas num edifício histórico saturado de episódios de discriminação, segregação e preconceito. Até uma vítima, ou os seus herdeiros morais, podem perder a razão.

A forma mais directa de perceber o ridículo do tema, será a de imaginar os dois corolários-limite do que agora se reclama:

  1. A criação de quatro novas categorias de prémios: «best african-american actor in a leading role»; «best african-american actor in a supporting role»; «best african-american actress in a leading role»; «best african-american actress in a supporting role»;
  2. A introdução de uma percentagem (quota) em cada categoria, que assegure a correcta representatividade dos afro-americanos.

A primeira opção cairia no âmbito da segregação. Ser chutado para um gueto de categorias, seria humilhante. Há que descartá-la de imediato.

Passemos à segunda. Se atendermos ao facto de que apenas 12,5 % (valor aproximado) da população dos EUA é afro-americana, e se considerarmos que, em média, há cinco nomeados por categoria, chegamos à brilhante conclusão de que 0,625 dos nomeados por categoria deve ser afro-americano. Arredondemos para 1, por motivos materiais. Ou para 2, para compensarmos o passado.

Ultrapassado este constrangimento, passemos ao seguinte: assegurar, junto de produtores e realizadores, que a «matéria-prima» a utilizar nos filmes (actores/actrizes) cumpre a quota. É, aliás, aqui que tudo se joga, e não propriamente a jusante. «Filhos da quota»? A sério? E os hispânicos? E os asiáticos?

O assunto é absurdo e pouco ou nada edificante. Mas dificilmente será esquecido. Até porque, em matéria de queixas, a discussão já chegou às «indemnizações.» E, acrescento eu, aproxima-se a passos largos do ponto em que a discriminação vingará a discriminação e a intolerância encetará o seu triunfal caminho.

PS1: no espaço de minutos, este post já provocou um módico de indignação no Twitter. Era previsível. Estive para invocar o Thomas Sowell (um grande racista, como todos devem saber) e dar exemplos de como, no passado, as políticas de affirmative action foram, em muitos casos, erradas e contraproducentes. Não o fiz. O ponto era simples: podemos ter razões de queixa e, ainda assim, perder a razão no contexto x, com a proposta y. No caso concreto, acharia humilhante para a comunidade afro-americana a existência de uma «quota» de nomeações. É uma opinião. Peço desculpa.

PS2: reparo, agora, que este post vem logo a seguir ao post em que «bati» no Benjamin Clementine… (estou feito, no que toca a epítetos.)

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Let him go into the darkness (ou ‘O meu problema com o Benjamin Clementine’)

Para não maçar os meus leitores (se tenho dois) ou o meu leitor (se tenho um) com uma introdução grandiloquente sobre o tema em apreço, que reputo de importante, vou direitinho a essa fonte inesgotável de conhecimento chamada Wikipedia:

«In 2014, during the shooting of his music video for “At Least for Now,” Clementine fell on a pile of stones in Ireland, badly injuring his elbow, then later cut a toe whilst walking on stones. In March 2015, whilst performing in the middle of a concert in Paris, he cut a finger open and started to bleed, but kept on playing until an audience member threw tissues to the stage. He stated that it was an accident due to his intense performance, and claimed that he would die for his music.»

Por esta altura, espíritos mais sensíveis, intelectos mais perspicazes ou o Jonathan Richman, que junta estas e outras qualidades num só corpo, já terão percebido tudo. E o tudo é isto: o Benjamin Clementine não passa de um enfatuado a criar a mais chata e pretensiosa música à face da terra.

Mesmo aceitando como verosímil morrer-se de um golpe no dedo grande do pé, e que sangrar do dedo grande do pé é sinónimo de uma «intensa actuação» (quem não se lembra dos emblemáticos tempos em que o Reed e o Cale sagravam, ambos, do dedo grande do pé na Avalon Ballroom, em São Francisco), e que o Benjamin trocaria a vidinha por uma grande performance, a verdade é que o artista Clementine – a pose, o estilo, a «grande voz» – parece a toda a hora carregar as dores do mundo, circunstância intensa e brutal que a semiótica benjaminiana tornou comprovável na forma como o artista actua sempre descalço (em busca, dirão alguns, de mais sangramentos), e a poética clementiniana nos faz questão de lembrar, não vá a malta esquecer-se do quão difícil tem sido a vida do artista:

I Benjamin
I was born
So that when I become someone one day
I always remember
I came from nothing

Yeah, right.

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Uma vergonha

Se não me falham as contas, no dia 7 de Abril de 2016 terão decorrido 241 anos sobre a data em que o eminente Samuel Johnson terá proferido a frase «patriotism is the last refuge of the scoundrel.»

Parece muito tempo? Não é.

2 de Fevereiro de 2016: Ana Sá Lopes, Directora Executiva Adjunta do jornal I, ou simplesmente jornalista (para abreviarmos), acaba de vislumbrar a quinta coluna alemã: «Portugal dispõe hoje de uma quinta coluna bastante disponível para prejudicar os interesses nacionais em favor dos interesses dos países mais fortes da UE. São muitos, vivem de cara destapada, multiplicam-se pelas televisões (às vezes parecem omnipresentes) e desejam que Portugal seja derrotado, os portugueses sejam levados para mais cortes, as agências de rating rebentem com o país e os juros da dívida subam à velocidade dos balões.»

Isto não é só uma idiotice pegada: é vergonhoso. É vergonhoso que em democracia (leia-se: em liberdade), alguém ouse invocar o denominado «interesse nacional» (patrióticozinho, claro está) para sustentar um voto ou um pacto de silêncio.

Longe de mim apelidar de «canalhas» Ana Sá Lopes, o dr. Galamba e os que agora elogiam o «sentido patriótico» dos que emudecem ou evitam maldizer o orçamento e as negociações dos bravos dr. Centeno e dr. Costa, em contraponto à horda pervertida de «traidores à pátria» que recusam o silêncio ou as falinhas mansas em nome do «interesse nacional». Repito: é simplesmente vergonhoso.

A ideia começa por ser pueril: pensar-se que, caladinhos, passamos entre os pingos da chuva. Nem o Ruca e os seus amigos acreditam em tal coisa.

Avança por um princípio estreito, subjectivo e altamente duvidoso: o de que, em abstracto ou em concreto, os governos defendem sempre o «interesse nacional». Uma redonda e trivial mentira, que a história se encarregou de provar: at the end of the day os governos defendem os seus interesses (corporativos, ideológicos, partidários, de sobrevivência, etc). Quando muito, defendem uma «ideia» (repito: uma ideia) do que é o «interesse nacional.» Não raras vezes errada e com nefastas consequências.

Passa por negar o óbvio: numa democracia e em liberdade, cabe aos cidadãos – seja o varredor, seja o doutor deputado – ajuizar das opções, métodos e figuras que certas figuras se prestam a fazer em nome do «interesse nacional.» É perfeitamente defensável achar que o que se está a desenrolar aos nossos olhos, de há duas semanas a esta parte, fere mais o «interesse nacional» (entre aspas) do que o silêncio. É perfeitamente legítimo gritar isso a céu aberto.

Acaba no prosaico: o dr. Galamba e o dr. Porfírio sabem que nós sabemos que eles sabem que, invertidas as posições, os socialistas seriam os primeiros a desrespeitar um putativo e tácito voto de silêncio, juntando-se provavelmente à «outra esquerda» na escolha dos epítetos «salazarento», «fascizóide» ou «bolorento», para caracterizar quem ousasse recorrer a argumentos impregnados de «patriotismo». Seriam livres para o fazer. E estariam certos.

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Don’t mention lupanar

Nada há que se compare a um jantar impregnado de jornalistas, para se ter acesso ao retrato cru e razoavelmente fidedigno do recreio político que se vai desenrolando, sob o quotidiano dito «normal» de milhões de constituintes, no seio dos partidos políticos (também conhecidos como «aparelhos».)

Ouvimos e pensamos: «não pode ser assim tão mau». Pois não: é pior.

Desde logo, a valsa não é lenta: a conflagração marca o ritmo, a parlapatice é generalizada, a tensão é a pedra de toque.

Tráfico piramidal de apoios, compra de votos, caciquismo em roda livre, golpadas palacianas, facadinhas nas costas, denuncias, traições e bufaria: há de tudo um pouco. A natureza humana em todo o esplendor.

Há gente que não distingue uma azinheira de um sobreiro; um borrego de um cabrito; uma função logarítmica de uma exponencial; uma taxa de um imposto; a tabela periódica de uma tabela de básquete; Racine de Estaline; ou que fala, com o ar mais sério do mundo, em «crescimento negativo» e «empoderamento». Mas é observá-los nas alamedas e interstícios partidários: virtuosos do calculismo, mestres da encenação, maquiavéis na disputa, formiguinhas laboriosas e criativas, pequenos e adoráveis déspotas nas «concelhias» (circunscrições que não implicam grandes «inteligências», apenas o tempo e a dedicação próprias de quem não tem uma profissão «cá fora»).

Regra geral, todos os partidos produzem e pastoreiam certo tipo de «funcionários»: treinados, desde tenra idade, no campus das jotas; hábeis no contacto com «as bases»; proprietários de três ou quatro ideias vagas sobre «ciência política» (normalmente apreendidas nas universidades de Verão ou num transitório e louvável esforço autodidacta); especialistas nas «inscrições compulsivas» e na actualização criativa de «cadernos». Gente muito animada, que faz questão de se «inscrever» na sociedade.

No meio da lufa-lufa, há registos de relativa acalmia, onde valores mais altos concorrem para a arregimentação e aguçam a concentração: nas vésperas da corrida ao poder (a união faz a força) ou depois da tomada deste (oba, oba). Sobretudo neste último caso.

É por demais sabido que estados de má nutrição, provocados por períodos de prolongada carência, são propícios à acrimónia, à ansiedade e à irreflexão. A chegada ao poder é uma espécie de plaina conciliadora: as arestas são removidas, as disputas afagadas, as excrescências opiniativas desbastadas, o nervosismo nivelado para níveis aceitáveis. É o tempo do amanho e da nutrição.

Isto tem mal? Não teria. O problema é que destas nebulosas sai gente que vai ocupar cargos de chefia, direcção e governo, com uma visão muito estreita do que é a política, o convívio democrático e, em última análise, o país real. O caldo iliberal, anti-democrático e acintoso que os alimentou, produzirá os seus efeitos na forma como se relacionam, como expõem os seus argumentos, como respeitam (ou não) a sua independência e a sua liberdade. Se isto não é trágico, anda lá muito perto.

Estarei eu a abraçar um discurso perigosamente generalizador, e por isso injusto e populista?  Call a lawyer and sue me.

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Às avessas?

Apesar de ter defendido em sede própria que deveríamos aceitar democraticamente o governo minoritário do Dr. Costa, apoiado no parlamento pela extrema-esquerda, e agora devotadamente servido pela nomenclatura socialista (lastro socrático incluído), não abdiquei daquilo que penso e da posição que ideologicamente julgo ocupar.

E o que penso, resumidamente, é isto:

  • O Dr. Costa escondeu do eleitorado um mega-facto: caso se proporcionasse, tinha a intenção de percorrer o kama sutra* com a extrema-esquerda (*também conhecido por «posições conjuntas»), intenção que ficou bem patente no discurso de «derrota» na noite do dia 4 de Outubro (estavam lá todas as pistas) e nada clara nas semanas e meses anteriores;
  • O Dr. Costa não cumpriu o que disse na noite do dia 4 de Outubro: que recusaria «coligações negativas» (e temos a agradecer o cândido e televisivo reconhecimento do deputado João Oliveira sobre o processo: gorados os propósitos «programático-ideológicos» de uma grande coligação de esquerda, fixou-se o objectivo no mais comezinho «derrube da direita»);
  • O Dr. Costa propôs-se ganhar e não por poucochinho; não só não ganhou como perdeu para uma coligação que jurou «tenebrosa» (opinião não secundada pelo eleitorado); foi feio não ter reconhecido a derrota e retirado as devidas ilações políticas; isso marcá-lo-à para sempre;
  • O Dr. Costa nunca esteve minimamente interessado em chegar a acordos com o vencedor das eleições (foi penosa a coreografia «vou-ali-fingir-que-vou-iniciar-negociações-com-a-coligação-de-direita»);
  • O regresso à «normalidade» (ou seja: socialistas no governo) com as personagens que agora entraram em cena, só augura o regresso do mesmo de sempre: reformas cosméticas no lugar de estruturais; a defesa do corporativismo travestida de «diálogo institucional»; a recusa em perceber o significado da palavra «austeridade» (não é um eufemismo para «castigo corporal», é tão só e apenas isto: rigor máximo no controlo dos gastos, adaptando-os aos recursos disponíveis); uma visão estreita das liberdades e da responsabilização individuais.

Dito isto, ou talvez por isto, o meu espírito encontra-se num estado que tolera bem a qualificação de confuso, quando observo as reacções de alguns liberais portugueses.

Não estranho que os meus amigos liberais duvidem da bondade, eficácia ou alcance de medidas que concorrem para o aumento da despesa (desde logo no facto, aparentemente menor mas simbolicamente perfeito, de se tratar de um dos maiores governos do pós-25 de Abril, onde parece caber tudo e o mais além). Nesta matéria, estou com eles de alma, coração e vísceras.

Já não compreendo que coloquem no mesmo saco (eventuais) intuitos de redução da carga fiscal.

O que se espera de um governo socialista, que sucede a um governo dito liberal, é que faça perdurar no tempo as opções socialistas do antecessor e dito liberal governo. E que acrescente muitas mais.

O que não se espera dos liberais de boa cepa, é que se aborreçam com objectivos que contrariam, no plano dos princípios, o pendor socialista de governos ditos liberais.

A diminuição da carga fiscal, por muito arriscada ou pífia que possa parecer, deverá ser sempre acarinhada, mimada, lambuzada por almas liberais – ou, mais prosaicamente, pelos contribuintes que observam, com um desespero mudo, este singelo facto: em quarenta anos de democracia, nunca se baixaram impostos (lá está: houve que servir a despesa.)

Há qualquer coisa de errado quando a esquerda em peso se queixa do «esbulho fiscal» e a direita liberal aplaude ou encolhe os ombros.

Como diria Cesariny: não deve ser disso de que se devem queixar. O que devem os liberais fazer? Provar que um socialista jamais contrariará a sua própria natureza.

Em matéria fiscal, o governo minoritário e socialista do Dr. Costa não se prepara para reduzir impostos ou para acabar com a austeridade: prepara-se para suprir os efeitos de uma descidazinha aqui (vendida como «generosa»), com os resultados de uma subidazinha acolá (vendida como «necessária» ou «socialmente justa»). Até a privatização da TAP vão agradecer (para desespero do activista cineasta activista António-Pedro Vasconcelos.)

É nesse plano que nos devemos concentrar. O tempo das máscaras acabou.

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A insustentável irrelevância das evidências

Reza Aslan expõe aqui um argumento catita: «O Islão, como qualquer outra religião, não é violento. Violentas são as pessoas.»

(Por acaso, e só por acaso, é um argumento querido à NRA: as armas não matam; quem mata é quem prime o gatilho. Argumento que o progressista Reza Aslan achará, neste contexto, «falacioso». Já sabíamos: os argumentos, como os padrões dos cortinados, dependem muito dos «contextos».)

Ao contrário do que Reza Aslan pretende fazer crer, não há religião sem fieis, acólitos e sacerdotes. Não há religião sem hermenêutica, preconceito, dogma ou doutrina. Nenhum destes elementos é indissociável ou absolutamente estanque. Podemos recorrer ao positivismo histórico para dissecar «cientificamente» as escrituras, e levar a cabo eventuais testes de stress, mas é na subjectividade do exegeta, no laborioso trabalho do sacerdote, na devoção dos fiéis, na dedicação do beatério e, ponto importante, na evolução crítica da praxis eclesial e dos dogmas, que tudo se joga. A religião não é uma senhora provecta, adepta do five o’clock tea e do bridge, que invariavelmente tentam corromper numa galáxia distante, onde habita. Coitada: teve azar com as companhias.

A ausência de uma condenação clara, inequívoca, cognoscível e institucional por parte dos líderes do Islão, aos atentados de Paris, é ensurdecedora * e leva-nos a concluir, com legitimidade, que algo está podre no reino do Islão.

O ocidente não está em guerra com o Islão e, contudo, é do Islão que brotam as tentativas maximalistas de acabar com os «infiéis» – ou, em dias mais solarengos e aprazíveis, de converter a horda que se prostitui moralmente nos botequins e zincs.

A maioria dos Estados auto-proclamados «Islâmicos» são teocracias que, por uma «bizarra» e «estranha» coincidência, caucionam leis, ritos e costumes bárbaros: a pena de morte para apóstatas; o preconceito e a discriminação institucionalizada contra os homossexuais; a execrável subjugação das mulheres; a cobertura legal a castigos inumanos e desproporcionados; e por aí fora.

O Corão não dá cobertura a isto? Provavelmente, não. Corolário a adoptar: não toquemos no Islão. Curiosamente, ainda hoje não hesitamos em lembrar e denunciar fervorosamente a inquisição, a caça às bruxas, a perseguição de populações indígenas, o julgamento de Galileo ou, mais recentemente, os actos de pedofilia no seio da igreja católica. Também nestes casos, o Livro, per se, não deu cobertura. Daí que sejam comuns, desde há séculos, relambórios do tipo: «relembremos o caso em que alguns indivíduos mal intencionados, empenhados em desvirtuar a essência de uma religião, e na sua grande maioria padecendo de aguda insanidade por via da pobreza e da segregação, levaram a cabo a queima da Sr.ª D.ª Joana d’Arc.» Ia jurar que ainda ontem o Prof. Fernando Rosas os invocou.

Podemos continuar, contentes e descansados, a enterrar as nossas inestimáveis cabeças na areia do politicamente correcto, abraçando a complacência e reputando de «irrelevante» o que é evidente. Mas não tenhamos ilusões: não estaremos, certamente, a ajudar o Islão.

* PS: alguns amigos fizeram questão de me lembrar que, desta vez, não foi bem assim: houve registo de fortes condenações por parte de alguns líderes religiosos muçulmanos. Oxalá que assim tenha sido. Dar-me-ia muito gosto estar enganado.

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Dos insectos e humanos

Conforme explicou limpidamente Robert Benchley, pondo em causa a tese do Prof. Bouvier (segundo a qual os insectos poderiam não gozar da inteligência que por vezes lhes queremos atribuir), os insectos levam tempo a matutar e a decidir sobre assuntos complexos: o efeito alucinogéno da piretrina e a sua implicação na saúde da espécie; as condições de trabalho nos favos ou caixotes do lixo; a influência da policromia nos trabalhos de polinização; que tipo de sangue aporta mais nutrientes; causas e origens de metamorfoses degenerativas que descambam na monstruosa transformação dos insectos em gregórios samsas; etc.

A vespa do Sr. Benchley, por exemplo, levou uma noite inteira a reflectir sobre se deveria, ou não, dar início ao trabalho de organização do catálogo de larvas do Sr. Benchley. Ao fim de várias horas, decidiu, e muito bem, não o fazer, compreendida a cabal ignorância em matéria de larvas, e a ruína organizativa que daí poderia resultar. Uma vespa irreflectida teria metido patas à obra.

É certo que há assuntos que requerem, pela sua natureza, um tipo de raciocínio que os humanos gostam de reputar de «instantâneo» ou «reactivo». É o caso, por exemplo, do estudo do ângulo e da velocidade de um mata-mosquitos no momento em que é desferido o golpe. Uma reflexão demorada significa, para o comum dos insectos, a morte. Há insectos mais lentos de raciocínio. Regra geral, vivem pouco.

Nos humanos-políticos, é muito parecido. Há humanos-políticos mais «reactivos», há humanos-políticos mais «reflectivos» (há também os que não são nem uma coisa, nem outra, mas não pretendo falar de protozoários.)

O Prof. Cavaco Silva é o exemplo de um humano-político dado à reflexão. O melhoramento geral do povo leva a que o Prof. Cavaco Silva não dispense uma boa meditação, acompanhada de aconselhamento técnico, moral e político. Mesmo que, como a vespa do Sr. Benchley, acabe a completar uma volta de 360º, exausto e triste. Isto enerva muito a esquerda (a esquerda enerva-se muito.) O que facilita a identificação dos humanos-políticos reactivos.

Um humano-político muito reactivo aos roteiros reflectivos do Prof. Cavaco Silva, é o deputado Tiago Barbosa Ribeiro. Há dias, reagindo a afirmações de que se aliviou o Prof. Cavaco Silva, o deputado Tiago Barbosa Ribeiro apelidou-o de «gangster». No dia seguinte, acabou a pedir desculpas. Um bom exemplo de uma atitude «reactiva» irreflectida de um político «reactivo» pouco dado à reflexão (tanto mais que, neste caso, a ausência de reacção não representava perigo de vida.)

Mais sofisticado, é o caso do deputado João Galamba. Na noite do dia em que o Prof. Cavaco Silva fez o primeiro discurso «de seita» (recorro à terminologia de esquerda), o deputado João Galamba apelidou-o de «golpista». A imputação passou mais ou menos despercebida. Mas uma coisa é certa: podemos e devemos culpar o deputado João Galamba pela introdução e banalização do termo «golpista», sinal de um péssimo serviço prestado aos seus constituintes.

Seja como for, nos humanos-políticos, a dicotomia reflexão-reacção (agradeço a oportunidade de poder usar o termo «dicotomia») é tensa, amiúde comprometedora e também difusa. Há, aliás, conhecimento de estirpes híbridas. Veja-se o caso da deputada e incumbente Catarina Martins. É «reactiva», nas suas expressões populares? É. E reflectiva? Também. Característica muito comum nos himenópteros demagogicus.

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Paris, 13 de Novembro de 2015

Estar há mais de vinte minutos a tentar escrever uma linha que seja sobre os acontecimentos de Paris, demonstra bem o quão ridículo é escrever sobre a barbárie. É dificílimo, para não dizer impossível, fazer elevar uma frase que seja um milimetro acima da linha de água das trivialidades pungentes, clichés eloquentes ou leituras entendidíssimas que por aí pululam. Não há articulista, blogger ou mosquito que não tenha já tentado a «correcta» dissertação, o «novo ângulo», a «verdadeira lição», a «denuncia do ilusório», o «despiste das aparências» – demonstrando, simultaneamente, o quanto sofre e mantém fria a cabeça.

O que acabei de escrever não deixa de ser arrogante. E parvo. E injusto. Para além de parecer prefaciar a «grande» ou a «verdadeira» elucubração sobre o que aconteceu: origens, causas, enquadramento presente, enquadramento futuro, do terrorismo. Nada de mais errado.

Só venho aqui pedir para que, pelo menos desta vez, nos deixemos de merdas. Isso mesmo: merdas. Não quero, não suporto, acho medonho e triste assistir ao enésimo númerozinho da praxe de alguns ungidos que aproveitam politicamente o momento para marcar mais um pontinhos mediáticos, enquanto nos tentam ensinar a não «odiar».

Qual será, ao certo, o melhor momento para «odiar»? Se não puder «odiar», agora, gente desta laia, que professa, difunde e treina o fanatismo, quando o poderei fazer? Se não puder «odiar» os animais que perpetraram os atentados terroristas, quando, ao certo, o poderei fazer?

Aguardo explicações, pedindo, desde já, desculpas pelo meu primarismo.

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No país das maravilhas

Artigo 10.°

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor 30 dias após a sua publicação.

ANEXO
(a que se refere o n.° 4 do artigo 3.°)

Tabela de compensação equitativa

1 -Aparelhos, equipamentos e instrumentos técnicos de reprodução:
a) Equipamentos multifunções ou fotocopiadoras jato de tinta – € 5/unidade;
b) Equipamentos multifunções ou fotocopiadoras laser:
Até 40 páginas por minuto – € 10/unidade;
Mais de 40 páginas por minuto – € 20/unidade;

c) Scanners e outros equipamentos destinados apenas à digitalização – € 2/unidade;

d) Impressoras jato de tinta – € 2,5/unidade;

e) Impressoras laser – € 7,5/unidade.

2 -Aparelhos, dispositivos e suportes:
2.1 -Equipamentos e aparelhos analógicos:

a) Gravadores áudio – €0,20/ unidade;
b) Gravadores vídeo – € 0,20/ unidade.

2.2 – Equipamentos e aparelhos digitais que compreendam as seguintes funções e não tenham incluídas memórias
ou discos rígidos:
a) Gravadores de discos compactos especíicos (CD) – € 1/unidade

(e por aí fora, alegremente)

Conclusão: se optarem por equipamento «laser» rapidinho, mais contribuirão para as «acções de incentivo à actividade cultural e à investigação e divulgação dos direitos de autor e direitos conexos.» Não sejam forretas: pelos direitos conexos sempre!

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Um pândego

O Prof. Dr. Reis Novais – constitucionalmente o maior constitucionalista auto-constituido da Constituição da República Portuguesa (é vê-lo e ouvi-lo, por Deus) e uma das mais independentes e imparciais cabeças da nação (leia-se: é de esquerda e odeia o actual Presidente da República) – o Prof. Dr. Reis Novais, dizia, é um homem de grande coragem.

Ontem, aos microfones da Antena 1, o Prof. Dr. Reis Novais insistia no seguinte ponto: a indigitação do Dr. Passos Coelho e a tomada de posse do XX Governo Constitucional foram uma perda de tempo (só possível, insinuou o Prof. Dr. Reis Novais, pela constitucional inconsciência do actual figurante de Belém, que estupidamente teimou em não despachar a coisa.) Defendeu ainda o Prof. Dr. Reis Novais, que o Presidente da República não deve nem pode imiscuir-se nas decisões do parlamento. Ou seja, que o parlamento dita, escolhe, põe e dispõe quem governa e como.

Só um intrépido arriscaria dizer, com o ar mais sério do mundo, uma coisa que contradiz a outra. E só um destemido poderia insinuar que, nos dias 20 e 21 de Outubro, o Presidente da República estaria na posse das «garantias» conducentes à prossecução da vontade do Prof. Dr. Reis Novais, depois de conhecidos, agora, os termos das três «combinações» bilaterais assinadas sobre uma mesa. Se a solidez, densidade e textura das «combinações» são o que são hoje (há farófias mais consistentes), imaginemos como seriam há vinte dias.

Viva o Prof. Dr. Reis Novais!

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A perder qualidades desde…

Consta por aí que tenho abusado da complacência e da candura; que a sinecura me amoleceu e me afastou do escopo; que perdi o norte (e me entreguei ao sul); que brinco com assuntos tremendos; que corro sérios riscos de invertebração; que tardo em inscrever-me nas perplexidades da vida política moderna; que pareço parvo e forrado do mesmo. Anda gente desconfiada à minha volta.

O respeitável Rui Ramos avisa-me: o meu divertimento comprova a incompreensão da «doutrina das etapas» do PCP e do BE.

Ouço «doutrina das etapas» e estremeço. Confesso-me assustado. Sinto-me não recomendável. Era criatura para me inscrever num aggiornamento doutrinário que me espicaçasse a verve e me pusesse em sentido. Em contrapartida, concubinei-me com a bonomia e encaminho-me para o opróbrio.

Vamos falar a sério? Ok.

Ao certo, ao certo, pretendiam o quê? Um bloco central prontinho a servir a estratégia da extrema-esquerda, que cavalgaria a onda com o populismo troglodita que a caracteriza e contribuiria decisivamente para a pasokização dos partidos moderados?

Um governo minoritário de direita que, como está bom de ver, passaria agora a ser tratado com respeito e boa-fé, em conversas «francas», reuniões «construtivas» e convergências «desinteressadas», no mais são e escandinavo ambiente parlamentar?

Um Presidente que chumbasse o(s) arranjinho(s) e, de caminho, lançasse o país numa batalha campal, estendendo o tapete à estrondosa e insuportável vitimização da «esquerda destratada»?

Uma sublevação do Regimento de Lanceiros? Um pronunciamento militar de cariz patriótico?

Como diria Oliveira Martins, «noutras terras, com outra gente, havendo melhor sangue, mais juízo e maior critério», poderíamos falar do que seria se fosse.

Resta-nos isto. E o beaujolais.

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