Vasco Pulido Valente, Outubro de 2019

[Entrevista]

Há uns tempos a The Atlantic fez um número especial sobre democracia, todo dedicado a tentar responder a uma pergunta: “estará a democracia a morrer?” Qual é a sua resposta?
Não. Pelo contrário, acho que a democracia se está a intensificar de dia para dia. Por exemplo: as causas do politicamente correto são causas democráticas. Primeiro, são causas libertárias, e nessa medida são individualistas, e, na medida em que são individualistas, são democráticas. Porque só se pode falar de valores se se presumir que um indivíduo equivale ao outro. Quando se fala em liberdades especiais e todas as causas do politicamente correto para uma expansão da liberdade –, do nascimento à morte, do aborto à eutanásia e testamento vital –, essas liberdades postulam uma igualdade e alargaram a liberdade do indivíduo.

Às vezes esquecemos que não há nada de inevitável na democracia, pelo contrário: as democracias liberais são sistemas recentes e a História é muito mais feita de regimes autoritários e iliberais.
E há as democracias iliberais. A democracia é em si mesma iliberal. Democracia e liberdade são duas realidades difíceis de conviver.

Apesar disso ainda nos surpreendemos de cada vez que vemos uma democracia tomar um rumo iliberal. Porque é que assumimos que uma democracia deve ser liberal?
Não sei… A democracia começou com o completo iliberalismo. Na Revolução Francesa, à medida que se foi estabelecendo a igualdade e a democracia, houve um caminho de restrição dos privilégios, nomeadamente o maior privilégio de todos, que era o privilégio da Igreja, que está na origem da alma do jacobinismo e da democracia. Houve uma luta contra o privilégio religioso, ou seja, pelo caráter secular do Estado, e por não haver limites à vontade da maioria. Na realidade a ideia é aplanar todos os obstáculos à vontade da maioria, e isso os ingleses perceberam logo. O Burke diz logo isso nas “Reflexões [Sobre a Revolução em França]”: se não há obstáculos sociais e institucionais à vontade da maioria, não há liberdade. Ponto final, parágrafo.

O Tocqueville depois apresenta o conceito de tirania da maioria como corolário disso…
Sim. Os liberais o que fazem é constituir obstáculos à vontade da maioria, como nós temos: separação de poderes, freios e contrapesos, uma série de obstáculos institucionais à vontade da maioria. Nesta coisa das redes sociais vê-se o que podem fazer as maiorias de ocasião, mesmo informais e inorgânicas.

A turba.
Sim, isso mesmo. As turbas que se juntaram nas ruas de Paris para cortar a cabeça a A ou B, às vezes sem lógica nenhuma.

As democracias liberais estão a saber lidar com os homens fortes iliberais que aproveitam os mecanismos existentes para subverter esses travões, esses freios e contrapesos, e minar o império da lei?
As democracias liberais nunca foram suficientemente fortes, e estão mais fracas, no sentido em que as novas tecnologias (e eu detesto este termo, mas à falta de melhor…), a internet e essas coisas, destroem as instituições. São a principal ameaça às democracias liberais.

Porquê? Pela velocidade, pelo imediatismo?
Sim, e pela comunicação e participação massiva e fácil. O problema é que não há filtros. No jornalismo há filtros, e muito bem, mas na internet não há filtros suficientemente fortes nem largos. E cada vez mais a opinião maioritária se forma à margem da opinião filtrada, ou erudita, e é eficaz, porque depois pouca gente se atreve a abrir o bico contra a ortodoxia reinante, mesmo quando discorda profundamente.

Tecnologias que à partida permitiriam mais acesso a informação e maior capacidade de participação seriam perfeitas para melhorar os mecanismos de uma democracia participativa.
Sim, se cada pessoa usasse essa tecnologia para ler um jornal online, ou para aceder a certo tipo de fontes de informação… mas em vez disso as pessoas comunicam umas com as outras, e mesmo a informação que começa certa acaba por se corromper. A desinformação é uma consequência disto tudo.

É também isso que está a erodir aquele terreno do meio onde as pessoas conseguiam chegar a consensos ou compromissos? Cada vez mais as posições estão extremadas e os entendimentos parecem mais difíceis.
Não tenho essa sensação de que as coisas estejam extremadas.

Não? Os discursos extremistas propagam-se cada vez com mais rapidez e têm cada vez mais força, minando os espaços de consenso.
As pessoas não votam nos extremismos por causa das coisas que leem nas redes sociais. As pessoas deixam é de aceitar as instituições. Por exemplo, rejeitam a sabedoria da universidade, porque têm a Wikipédia e podem ter acesso a muitos artigos, e copiar, e ter opiniões e ficar contentes com isso. Os professores que lhes dizem: “talvez seja bom ler uns livros durante uns anos antes de começar a dar opiniões”, são rejeitados e, pior, ignorados. Começa a haver outro universo ao lado deles. As instituições deixam de funcionar. O que é que os padres têm a dizer a alguém hoje em dia? As pessoas vão ao computador e confessam-se aos amigos que têm no Facebook. Tudo foi dessacralizado, até o sexo… É claro que eu acho que as causas do politicamente correto são boas causas, porque são causas de liberdade, mas não deixaram de destruir as instituições que havia.

Se calhar há um ponto de equilíbrio que ainda não encontrámos…
No Ocidente já não há.

Qual é a consequência disso?
É que o progresso tecnológico vai ser cada vez mais rápido, o progresso democrático vai ser cada vez mais rápido. Mas não o da democracia liberal. Não sei é como é que se vai fazer o equilíbrio entre a massa democrática que está a criar o politicamente correto e depois o próprio politicamente correto. O politicamente correto libertou – e fê-lo com um postulado fundamental: o respeito pela liberdade individual. E isso libertou uma enorme massa de indivíduos que não tinham liberdade individual. Eu não quero ser petulante nesta coisa do historiador, mas isto é mesmo muito recente para a gente perceber, mas intriga-me saber como é que esta afirmação do indivíduo nas causas do politicamente correto se pode compadecer com um regime democrático em que uma maioria manda de forma opressora. É uma massa, e não sabemos o que vai fazer essa massa.

Porque é mal informada e ignorante?
Não. Porque é uma massa. Chamar às massas ignorantes e berrar contra as fake news não é realista. Não é ignorante, nunca houve massa mais educada na história da humanidade, nunca teve tantos utensílios e tanta preparação. Mas a massa em si própria, por definição, não tem mecanismos de controlo.

Ao mesmo tempo que se aprofundam os direitos individuais onde existem democracias funcionais, também temos visto um retrocesso democrático em muitos outros países, onde a democracia é cada vez mais imperfeita, ou está mesmo posta em causa, e quase sempre esses processos começam com a eleição de líderes iliberais. Como encara estes fenómenos?
Há uma resistência aos impulsos liberais. Por razões políticas está-se a chamar populismo ao que é, de facto, nacionalismo. O nacionalismo na União Europeia é uma reação à UE, às vezes ambígua, porque uma causa nacional pode querer ao mesmo tempo beneficiar das ligações económicas à UE e depois recusar as ligações políticas e a parte da entrega de soberania. A UE está muito espantada com o crescendo do populismo porque não quer dar o nome às coisas – parece-me evidente que a integração europeia, a devolução da soberania para um centro decisório em Bruxelas, não é suportável para nacionalidades fracas, mal constituídas ou recentes.

Daí que o fenómeno nacionalista seja mais agudo no Leste da Europa?
Com certeza. A Europa reaviva as questões nacionais. No Ocidente, a Itália e a Espanha têm questões nacionais vivas. A Itália nunca teve uma nacionalidade bem constituída, é uma agregação de estados muito recente, do fim do século XIX. Foi em Nápoles que a Liga teve maior apoio eleitoral, porque a imigração veio chocar com uma nacionalidade fraca. A Hungria também sempre teve problemas de nacionalidade – primeiro, dependia do Império Austríaco; depois, entre as duas guerras, teve uma guerra civil prolongada; há problemas de fronteiras e de subordinação dos magiares aos alemães; e, depois, ficaram na esfera soviética e só recentemente é que são independentes.

A construção europeia nunca foi um processo democrático; foi tecnocrático e sempre decidido de cima para baixo. Por outro lado, Bruxelas limitou sempre a democracia dentro dos Estados, na medida em que se impõe a decisões internas. Essa ausência de democracia no processo de construção europeia, associada à interferência de Bruxelas na soberania dos Estados, era necessariamente a receita para o desastre?
Só não via quem não queria. Mas o desastre não vem bem daí. Vem de querer agregar nações que não são agregáveis. O facto de ser um processo pouco participado e pouco democrático é o resultado dessa impossibilidade de agregação, porque não se podem agregar Estados que têm vinte anos e que querem afirmar a sua nacionalidade, e para os quais isso prevalece contra a tendência de devolução da soberania para um centro que é uma burocracia francesa, que é o contrário de um Estado liberal. Essa entrega de partes de soberania para uma burocracia central que age em nome da “Europa”, em Estados com uma nacionalidade problemática ou fraca, cria uma tensão e as coisas fragmentam-se.

No caso dos países de Leste, também há a questão de pouca prática democrática, pois são todos democracias recentes.
Mas nós também somos uma democracia recente e não tivemos esses problemas.

É verdade. Olhando, por exemplo, para o caso da Hungria, tem havido um ataque a vários pilares do regime democrático e do Estado de Direito, e isso acontece dentro da UE. O que é que isso nos diz sobre a UE?
Significa que mais ou menos toda a gente na UE tem problemas nacionais, e eles não podem ter duas faces. Têm de chamar populismos aos nacionalismos, não podem reconhecer as verdadeiras causas das tensões e as verdadeiras causas dos populismos, porque quase todos têm problemas nacionais.

Porque é que nós nunca tivemos problemas com a democracia?
Porque temos uma nacionalidade absolutamente indiscutível.

Que correlação é essa entre nacionalidade bem afirmada e democracia?
Não é entre nacionalidade e democracia, é entre nacionalidade e entrega de parte da soberania nacional. Temos uma nacionalidade fortíssima, devemos ser a nacionalidade mais forte do mundo, sempre mais ou menos com as mesmas fronteiras, mais ou menos a mesma língua, a mesma religião – o que é que o nacionalismo português tenta reivindicar? Olivença? Não tem nada para reivindicar. A nossa nacionalidade nunca está em dúvida, se uma parte da soberania do Estado for devolvida a Bruxelas, não põe nada em causa, nenhum português fica com qualquer dúvida. O problema é que isso não acontece com os polacos – a Polónia foi feita com um bocado que a Rússia tirou à Alemanha… É evidente que o polaco tem uns problemas se começa a entregar soberania a Bruxelas. Começa por haver uma aceitação, porque eles querem ser aceites como europeus, mas por outro lado não querem entregar soberania.

Há uma excecionalidade portuguesa?
Há. Tem a ver com a nacionalidade. Já viu um povo perder um Império e continuar tão satisfeito como estava? As conversas nacionalistas pura e simplesmente não pegam connosco. Estamos tão confortáveis na nossa nacionalidade que é escusado. A não ser para dizer que o Ronaldo é o melhor do mundo, não há nacionalismo que pegue aqui. É por isso que a extrema-direita nunca vingou, mesmo com o Salazar. O Salazar meteu a extrema-direita na cadeia e proibiu a Legião Portuguesa de andar fardada nas ruas.

Temos sorte?
Não temos sorte, temos as condições. Temos as condições para uma democracia funcional, liberal. E o eleitorado português refugia-se sempre numa força, que é a força que dá estabilidade ao regime. Agora é o PS. A “geringonça” instaurou o PS como o grande árbitro do sistema. Ou seja, voltámos ao que o PS era no princípio. O Mário Soares governou assim muito tempo até o PCP se decidir a votar com a direita. E o António Costa vai governar até os dois extremos se decidirem a alinhar contra ele. O que será muito difícil – o que cair na asneira de se aliar à direita destrói-se.

Que balanço faz dos nossos 45 anos de democracia? O que é que a democracia mudou em nós enquanto povo?
O país democratizou-se, criou-se muito mais igualdade, mais distribuição de riqueza, mais educação. Socialmente, os portugueses mudaram muito, a sociedade mudou, está a morrer a sociedade antiga. A sociedade urbana antiga foi pulverizada e a rural está a desaparecer.

A grande mudança provocada pela democracia é o estado social?
A democracia traz o estado social, mas o estado social também é resultado da democracia. Não só uma melhor distribuição da riqueza, como todas as transformações fundamentais que decorrem da educação. Uma pessoa com o 12.º ano não é igual a uma pessoa com a quarta classe. E alguém com o curso superior não é igual a quem tem o 12.º ano – não é igual como pessoa, não estou a falar como “recurso humano”, como se diz. É uma das coisas que o Governo não percebeu: é que os enfermeiros têm um curso superior, não são um “recurso humano”, como antigamente. Isso torna a pessoa diferente, é constitutivo. E isso mudou a sociedade, porque as pessoas têm ambições diferentes, vistas diferentes, e sobretudo têm um sentimento muito maior da sua valia e dignidade. Desse ponto de vista é uma mudança absoluta.

E porque é que não torna as pessoas também mais participativas na vida política? A abstenção não para de subir, o desinteresse pela política parece ser cada vez maior…
Acho que a abstenção não é muito preocupante. As pessoas votam para garantir a segurança. Os portugueses têm a noção, mesmo que vaga, da fragilidade do país. O Passos Coelho e o Paulo Portas tiveram [em 2015] uma votação significativa, que não teriam em mais nenhum país da Europa. Ganharam as eleições. E porquê? Deram segurança e as pessoas têm medo de mudar. Quando se viu que eles não podiam formar Governo mas o António Costa podia fazer aquela aliança [com PCP e BE], o PS era o garante da segurança. Quando as pessoas são pobres, o maior valor é a segurança. Quando o Governo Passos-Portas caiu, quem ficou a garantir a segurança às pessoas foi o PS.

A segurança é o valor determinante no voto?
Sempre. É muito simples: as pessoas querem uma governação prudente, ou com aparência de prudência, que garanta a ordem e a segurança da sociedade. É isto.

Em países onde se têm imposto, democraticamente, líderes mais musculados, parece haver essa aspiração por ordem, mas também alguma fadiga da liberdade, porque a liberdade implica decisões, implica corresponsabilidade…
Não acho que haja uma fadiga de liberdade. O que se passa é que, quando as instituições democráticas não conseguem manter a ordem pública, estão condenadas. Veja o Brasil e o Bolsonaro: não havia ordem pública, as instituições democráticas não eram capazes de impor a ordem, e são até uma ameaça para a ordem pública, com a fragmentação partidária que há no Congresso, a corrupção total das instituições e a desordem nas ruas. Não é preciso grandes teorias. O problema da corrupção tem duas faces: uma são os dinheiros e os interesses envolvidos, mas isso é uma partícula dos dinheiros do Estado, sem peso nenhum; o que tem peso é a corrupção das instituições. A questão não é o Sócrates ter alegadamente roubado milhões, é ter posto o Estado ao serviço de uma ambição política que excedia as competências e os atributos que lhe eram dados pela Constituição. No Brasil aconteceu a corrupção das instituições, que desfigurou tudo: os cargos, os governos estaduais, o governo federal… Chegámos ao ponto em que o Brasil só podia ser governado pelo Partido dos Trabalhadores, que tinha uma certa organização, força e integridade, ou pelo Exército com as religiões evangélicas. E a escolha foi a que foi. Sempre à custa de uma diminuição da democracia, porque a República, enquanto tal, não existia.

Há quem veja o alheamento em relação ao exercício democrático como resultado do descontentamento da classe média, que sente que foi deixada para trás, seja pela crise económica pós-2008, seja pela globalização, ou pelas novas tecnologias, que permitem fazer mais com menos mão-de-obra.
Isso de fazer mais com menos gente é uma falácia marxista que continua a empatar o pensamento de toda a gente. Sobre inteligência artificial não sabemos nada, mas o que sabemos até agora é que o progresso tecnológico sempre exigiu mais mão-de-obra, e mais qualificada, o que é lógico, porque quanto mais complexos os sistemas, mais complexos são de gerir.

Também sabemos que a tecnologia acelerou a globalização, com mais deslocalização de indústrias, concentrando a mão-de-obra intensiva noutros países com menores qualificações, o que tem consequências nos níveis de emprego dos países desenvolvidos. E aí há uma reação da classe média que se sente traída – foi muito claro na eleição do Trump.
Se eu chamar reacionário ao Trump, você não fica surpreendido, e é natural que ele tenha um eleitorado reacionário. O problema é que não foi visto na América, onde estava e onde está a reação. O problema é muito mais profundo, e não sei porque é que as pessoas deixaram de pensar em termos gerais… O problema da América, mais uma vez, é um problema de nacionalidade. A nacionalidade americana está a mudar, os brancos daqui a 20 anos serão uma minoria, fundamentalmente por causa dos latinos, não tanto dos negros. Os negros são americanos e protestantes, enquanto os mexicanos são católicos e falam espanhol.

Os latinos colocam um problema de identidade ou económico?
De identidade. A imagem da América é o anglo-saxão que fala inglês e vai à igreja protestante. Tirando uma pequena maioria que vive em grandes cidades, os brancos não querem os latinos – daí o muro, que é sobretudo uma metáfora, mais do que um obstáculo real. O muro é a metáfora da resistência de uma identidade.

Quando vê o presidente dos EUA comunicar diretamente com o povo através de tweets de 240 carateres, o que é que vê ali?
Há uma passagem por cima dos meios habituais de comunicação. Ele está a dizer duas coisas: está a dizer o que diz e que não precisa dos meios habituais de mediação. O que para um presidente americano é muito importante, porque ele tem ali uma matilha de jornalistas à perna todos os dias, e pode dizer-lhes que não precisa deles. Tenho visto no que deu, mas não sei no que é que isto vai dar, e ninguém sabe como será nas mãos de outro. Pode melhorar a eficácia, pode ser uma coisa mais orientada, mais arquitetada, mais perigosa. O Trump não é um grande político, é um feirante. Um grande político ter as ferramentas que o Trump tem, não sei no que pode dar, porque nunca houve. Nem consigo imaginar. Mas consigo por a seguinte pergunta: o que seriam estas coisas nas mãos do Lyndon Johnson, que era um grande político? O que é que ele teria feito com a guerra do Vietname? Isto é propaganda, diretamente para o eleitor, sem intermediários.

E entretanto a comunicação social luta para manter alguma influência. Qual será o efeito da crise da comunicação social nas democracias que temos? Que democracia existirá sem uma comunicação social forte?
Nunca existiu nenhuma, portanto a gente não sabe. Estas coisas são todas muito novas para se saber que efeito vão ter. Há coisas no mundo em que nós vivemos, no mundo que eu atravessei, que eu não sei como vão acabar, não sei o que significam. Não posso dizer o que será a democracia sem jornais. Uma democracia só com televisões? Não sei. E com televisão de bolso ainda menos…

Porque o jornalismo implica pausa e reflexão?
Mais do que isso: uma hierarquia. Estou a falar dos jornais, não do jornalismo em geral. Os jornais implicam uma disciplina. Eu vi isso quando estive no Observador – os jornais online têm dois infinitos: cabe sempre mais uma notícia e cabe sempre mais uma coluna. Isso é um problema, porque não obriga a escolhas. Cabe tudo, por mais disparatado que seja. Os jornais em papel obrigam a uma disciplina e a uma hierarquia. No online, pode publicar um texto com 300 páginas, é só carregar no botão… Um jornal, não. Um jornal é uma espécie de carta geográfica que você dá ao leitor: a primeira página significa isto, a página ímpar tem mais importância do que a página par – o jornal dá uma direção ao leitor. Eu acredito que os jornais podem ressuscitar por isso, porque têm essa disciplina, dão uma direção.

Portanto, quando eu lhe perguntava como é que será uma democracia sem jornalismo, a sua questão era mesmo outra: como será uma democracia sem jornais?
Queria mesmo dizer: não sei como será uma democracia sem jornais. Vai ser uma coisa muito complicada.

(Vasco Pulido Valente foi entrevistado para a revista Egoísta, tema Democracia, pelo jornalista Filipe Santos Costa)

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Outra crónica

Paulo Varela Gomes

Um país lindo

(in Público, 05/12/2009)

“Portugal tem paisagens lindas. E também tem monumentos lindos, aldeias e cidades lindas. Toda a gente sabe isto, desde as alturas etéreas da academia e do gosto onde pontificam historiadores de arte como o abaixo-assinado até ao cidadão médio, passando necessariamente pelo operador turístico, no cerne de cuja profissão, tal como na do mecânico de automóveis ou do vendedor de seguros, está a capacidade de mentir sem hesitação. Tornou-se uma evidência socialmente partilhada que vivemos num país lindo, cheio de arte e arquitectura identicamente lindas.

Há cento e tal anos, porém, a elite pensadora portuguesa não pensava nada disto. Pensava frequentemente o contrário: que Portugal era um país vulgaríssimo no que respeita à paisagem e que não tinha arte ou arquitectura que merecessem menção. Havia meia dúzia de monumentos de relevo e até o decantado manuelino não passava de uma derivação – aliás grosseira – do gótico tardio internacional. A elite desse tempo (historiadores como Joaquim de Vasconcelos, etnólogos como Rocha Peixoto) pensava estas coisas porque comparava Portugal com outras regiões da Europa que conhecia bem. Era uma elite cosmopolita, tinha amigos entre a gente mais culta do mundo de então e achava as coisas portuguesas lamentavelmente pobres e, do ponto de vista estético, medíocres. Havia por essas coisas um interesse exoticamente etnográfico. Investigavam-se as habitações do Marão, por exemplo, como as de São Tomé e Príncipe, e com idêntica condescendência.

Isto começou a mudar a partir do final do século XIX. A ascensão do nacionalismo tornou menos confortável dizer-se que o país não valia nada do ponto de vista paisagístico ou arquitectónico. Passou por isso a valorizar-se o que havia. Os ideólogos mais capazes do Estado Novo continuavam a apreciar antes de mais os grandes monumentos mas, como os ideólogos liberais ou republicanos, encontravam poucos no país em comparação com aquilo que viam em Espanha ou em França. Basta ler-se a melancolia que espreita por detrás dos louvores com que o esplêndido historiador da arte Reinaldo dos Santos enaltecia as pequenas igrejas rurais de estilo românico. À falta de beleza ou magnificência, porém, os nacionalistas encontravam identidade nos edifícios e na paisagem portugueses. Iniciativas como o concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal de 1938 vinham enaltecer essa compensação identitária para o deficit monumental.

A partir das décadas de 1950 e 1960, a esquerda juntou-se aos cultores da identidade: as elites progressistas deixaram de aceitar a ideia de que a arte e a paisagem devessem ser julgadas do ponto de vista dos centros dominantes e começaram a valorizar a arte popular, regional e periférica. Em Portugal, arquitectos e etnólogos descobriram os encantos das aldeias e das casas que horrorizavam os seus colegas de algumas décadas atrás. Foi assim que se criou o estado de espírito com que hoje, todos juntos e a uma só voz, exclamamos que vivemos num país lindo. Muito lindo.”

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Uma crónica

Paulo Varela Gomes

Preto e Branco

(in Público, 13/11/2010)

“Converso por vezes com um amigo acerca da sua infância nos anos de 1980. É filho e neto de camponeses e dedica-se hoje a ofício diferente, embora ainda ligado à agricultura. Na época antediluviana em que era criança, ia a pé para a escola primária, descalçando os sapatos para passar a vau ribeiras cheias no Inverno. Embora não tenha saudades nenhumas daquele tempo em que era pobre e trabalhava duramente com a família, consegue recordar com prazer muitas histórias de brincadeira e riso, daquelas que compõem a vida de todas as crianças.

Pelo contrário, uma vizinha bastante mais antiga que ele tem saudades da juventude de há 50 anos. Lembra-se da aspereza da vida no campo, mas faz-lhe falta o que então havia e hoje já não há: muita gente, homens e mulheres que se juntavam para o trabalho do campo, a vindima, a apanha da azeitona, parando de vez em quando para uns copos de vinho ou pão com chouriço. “Aquilo era outra coisa, outra alegria”, diz ela, apesar de a aldeia não ter luz e os miúdos andarem rotos pela rua.

Lembro-me sempre, a este e outros propósitos, da ocasião em que assisti a uma exibição pública do famoso documentário Portugal: Um Retrato Social de António Barreto e Joana Pontes (2007). Os espectadores não tinham tido qualquer experiência directa de Portugal ou do período salazarista. As imagens, a preto e branco, passavam diante deles mostrando um país triste, oprimido, pobre. Às referências à miséria, ao subdesenvolvimento, à repressão somavam-se, talvez para tornar a coisa mais expressiva, frivolidades sobre o comprimento obrigatório das saias das raparigas ou a licença necessária para se ter isqueiro. A pobreza e a ditadura não bastaram aos autores do documentário; foi ainda preciso sugerir que se vivia numa opressão e tristeza permanentes.

Comecei a ficar seriamente irritado e saí da sala, não fosse ter que intervir no debate que se seguiu à projecção para dizer que aquilo era uma demagogia pegada e que a vida das pessoas nos anos de 1960 e início da década de 1970 não era nada a preto e branco. Por incrível que pareça, Portugal era a cores. Até eu, o meu irmão, as minhas irmãs, com o pai preso depois de uma tentativa de golpe anti-salazarista da qual saiu à beira da morte, a mãe também presa, uma vida material muito difícil, até eu tive dias e noites de praia, namorei, ouvi música pop, dancei naquilo que na altura se chamavam boîtes, usei o cabelo comprido e roupas extravagantes, fumei charros, tudo isso no Portugal salazarista ou caetanista. Até eu tive momentos de felicidade, e não foram poucos, embora fosse muito menos pobre que os pobres, esses, que também tiveram momentos de felicidade.

O que me irrita em histórias do passado como a daquele documentário e outros semelhantes é a redução da dureza da vida a uma história para assustar crianças, insultuosa para as pessoas que sofreram de facto essa dureza, mas também para as outras, tratadas como espectadores tontos de uma história da qual a visão a preto e branco retira toda a verdade.”

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Temos pena, não é?

O lamento de um cibernauta no Facebook:

Fechou a Casa Chineza.
Fechou a livraria Ferin.
Fechou a Casa Senna, a chapelaria Lord.
Fechou o Bota Alta, restaurante do Variações.
Vai fechar A Vida Portuguesa.
Felizmente irá abrir mais um hotel, uma souvenir shop ou um franchise de donuts recheados com queijo da serra e pepitas de chocolate.
Não restará tradição, património e memória na Baixa de Lisboa, apenas liquidação total, é como se a terra voltasse a tremer e o tsunami da modernidade levasse tudo à frente.

Aposto que este estimado cibernauta não punha os costados na Casa Chineza, na livraria Ferin, na Casa Senna ou no Bota Alta há anos. Aposto que frequentava aquelas pastelarias trendy, super orgânicas, repletas de casais lindos com filhos lindos. Aposto que comprava os super sustentáveis ténis Veja, em cuja feitura jamais participaram mãozinhas sub-18, no ônelaine. Aposto que nunca terá entrado na chapelaria Lord: usará um daqueles beanie hats feitos a partir de cânhamo, comprados num mercadinho obscuro numa daquelas zonas ex-decadentes da cidade, para onde convergem, agora, os voluntários da salvação.

Atenção: nada contra. Só que há lamentos que fedem.

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The Kinks Are

O mais bonito, e definitivo, manifesto conservador musical tem dono e data. Foi publicado em 1968 pela mão dos The Kinks, a banda dos irmãos Davies, no álbum The Kinks Are the Village Green Preservation Society. Eis a faixa de abertura The Village Green Preservation Society:

We are the Village Green Preservation Society
God save Donald Duck, vaudeville and variety
We are the Desperate Dan Appreciation Society
God save strawberry jam and all the different varieties

Preserving the old ways from being abused
Protecting the new ways for me and for you
What more can we do?

We are the Draught Beer Preservation Society
God save Mrs. Mopps and good old Mother Riley
We are the Custard Pie Appreciation Consortium
God save the George Cross and all those who were awarded them

We are the Sherlock Holmes English speaking vernacular
Help save Fu Manchu, Moriarty, and Dracula
We are the Office Block Persecution Affinity
God save little shops, china cups and virginity

We are the skyscraper condemnation afiliates
God save Tudor houses, antique tables, and billiards
Preserving the old ways from being abused
Protecting the new ways for me and for you
What more can we do?

We are the Village Green Preservation Society
God save Donald Duck, vaudeville and variety
We are the Desperate Dan Appreciation Society
God save strawberry jam and all the different varieties

We are the Village Green Preservation Society
God save Donald Duck, vaudeville and variety
We are the Village Green Preservation Society
God save Donald Duck, vaudeville and variety
God save the Village Green

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Again

Whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people’s hats off.

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Um homem raro

(artigo originalmente publicado em 2011 no Diário do Sul)

Aos 42 anos, não me recordo de uma figura portuguesa, ainda viva, com a qual me tenha identificado tanto. Há, é verdade, Vasco Pulido Valente e Miguel Esteves Cardoso, a quem devo o gosto pela arte da crónica jornalística, um género literário tão pouco valorizado em Portugal, e que, lá fora, foi apurado até à perfeição por gente como H. L. Mencken, Michael Wharton, Auberon Waugh, Jeffrey Bernard ou o recentemente falecido Christopher Hitchens. Refiro-me a algo de mais profundo ou, como está na moda dizer-se, abrangente: não apenas o estilo ou a forma, mas a disposição, o saber e a graciosidade. Refiro-me a Gonçalo Ribeiro Telles.

Sempre admirei, em Gonçalo Ribeiro Telles, a capacidade para «falar mais alto» sem nunca levantar a voz; de ser inconformista sem ser revolucionário; de ser original sem ser «modernista»; de «estar a ver o filme» quando, à sua volta, ninguém fazia a mais pálida ideia do que estava em causa; de ser coerente sem ser dogmático; de perceber que estava certo renunciando à altivez, à arrogância ou ao punho cerrado; de ser capaz de olhar para a árvore sem esquecer a floresta (e vice-versa.)

A sua originalidade parte de um dom raro: a capacidade para avaliar, de forma integrada e em perspectiva (passada e futura), o meio que o rodeia, nas suas mais diversas expressões: cultural, rural, arquitectónica e social. A sua visão crítica, mas paciente e desassombrada, da relação de eterna conflitualidade entre o homem e o território que sempre amou – alicerçada no princípio da preservação da unidade da paisagem, enquanto atributo da sua diversidade e beleza, e num profundo conhecimento da realidade – fez dele um homem sempre à frente do seu tempo. Os princípios que hoje consideramos como adquiridos, nas áreas da ecologia e do ambientalismo, foram postulados várias décadas antes por Gonçalo Ribeiro Telles.

Mas, como bem recordou Miguel Esteves Cardoso, Gonçalo Ribeiro Telles não foi apenas «o» jardineiro: foi, e continua a ser, o mais original dos filósofos políticos portugueses, remetendo-nos para o mais original e inclassificável dos filósofos ingleses do século XX: Michael Oakeshott. Em Gonçalo Ribeiro Telles, encontramos a «disposição conservadora» de que nos falava tão sabiamente Oakeshott no ensaio «On Being Conservative»: a defesa do regresso a escalas mais humanas; a apologia do belo em detrimento do «brutalismo»; o apelo à lealdade inter-geracional como ponto de partida fundamental para a conservação do legado natural, sem colocar em causa as reformas necessárias; a justa e precisa noção do carácter contingente das relações de equilíbrio entre o homem e o meio natural; a inclinação para a conservação e fruição do presente, em detrimento do corte abrupto, a maior parte das vezes irreparável, tão ao gosto das vertigens e urgências neotéricas (assépticas e acéfalas); a forma sábia como fazia notar as correlações vitais e as interdependências orgânicas entre os mais diversos elementos (os solos, a flora, a hidrologia, o património edificado…). «As preocupações são duráveis», como lembrava Guilherme de Oliveira Martins, na recente homenagem a Gonçalo Ribeiro Telles, organizada pelo Centro Nacional de Cultura e pela Fundação Calouste Gulbenkian (organização a cargo da Arq. Aurora Carapinha). Coisa que inquietava mas simultaneamente apaixonava e motivava este sage. Um homem bom, que teve sempre razão antes de tempo. Talvez por isso, continue, ainda hoje, a inquietar a ignorância estabelecida.

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Murder most foul

Twas a dark day in Dallas, November ’63
A day that will live on in infamy
President Kennedy was a-ridin’ high
Good day to be livin’ and a good day to die
Being led to the slaughter like a sacrificial lamb
He said, “Wait a minute, boys, you know who I am?”
“Of course we do, we know who you are”
Then they blew off his head while he was still in the car
Shot down like a dog in broad daylight
Was a matter of timing and the timing was right
You gotta pay debts, we’ve come to collect
We’re gonna kill you with hatred, without any respect
We’ll mock you and shock you and we’ll put it in your face
We’ve already got someone here to take your place
The day they blew out the brains of the king
Thousands were watching, no one saw a thing
It happened so quickly, so quick, by surprise
Right there in front of everyone’s eyes
Greatest magic trick ever under the sun
Perfectly executed, skillfully done
Wolfman, oh wolfman, oh wolfman howl
Rub-a-dub-dub, it’s a murder most foul
Hush, little children, you’ll understand
The Beatles are comin’, they’re gonna hold your hand
Slide down the banister, go get your coat
Ferry ‘cross the Mersey and go for the throat
There’s three bums comin’ all dressed in rags
Pick up the pieces and lower the flags
I’m going to Woodstock, it’s the Aquarian Age
Then I’ll go to Altamont and sit near the stage
Put your head out the window, let the good times roll
There’s a party going on behind the Grassy Knoll
Stack up the bricks, pour the cement
Don’t say Dallas don’t love you, Mr. President
Put your foot in the tank and step on the gas
Try to make it to the triple underpass
Blackface singer, whiteface clown
Better not show your faces after the sun goes down
Up in the red light district, they’ve got cop on the beat
Living in a nightmare on Elm Street
When you’re down in Deep Ellum, put your money in your shoe
Don’t ask what your country can do for you
Cash on the ballot, money to burn
Dealey Plaza, make a left-hand turn
I’m going down to the crossroads, gonna flag a ride
The place where faith, hope, and charity died
Shoot him while he runs, boy
Shoot him while you can
See if you can shoot the invisible man
Goodbye, Charlie
Goodbye, Uncle Sam
Frankly, my Scarlet, I don’t give a damn
What is the truth, and where did it go?
Ask Oswald and Ruby, they oughta know
“Shut your mouth, ” said the wise old owl
Business is business, and it’s a murder most foul
Tommy, can you hear me?
I’m the Acid Queen
I’m riding in a long, black Lincoln limousine
Riding in the backseat next to my wife
Heading straight on in to the afterlife
I’m leaning to the left, got my head in her lap
Hold on, I’ve been led into some kind of a trap
Where we ask no quarter, and no quarter do we give
We’re right down the street from the street where you live
They mutilated his body, and they took out his brain
What more could they do?
They piled on the pain
But his soul’s not there where it was supposed to be at
For the last fifty years they’ve been searchin’ for that
Freedom, oh freedom
Freedom above me
I hate to tell you, mister, but only dead men are free
Send me some lovin’, tell me no lies
Throw the gun in the gutter and walk on by
Wake up, little Suzie, let’s go for a drive
Cross the Trinity River, let’s keep hope alive
Turn the radio on, don’t touch the dials
Parkland hospital, only six more miles
You got me dizzy, Miss Lizzy
You filled me with lead
That magic bullet of yours has gone to my head
I’m just a patsy like Patsy Cline
Never shot anyone from in front or behind
I’ve blood in my eye, got blood in my ear
I’m never gonna make it to the new frontier
Zapruder’s film I’ve seen that before
Seen it 33 times, maybe more
It’s vile and deceitful
It’s cruel and it’s mean
Ugliest thing that you ever have seen
They killed him once and they killed him twice
Killed him like a human sacrifice
The day that they killed him, someone said to me, “Son
The age of the Antichrist has just only begun”
Air Force One coming in through the gate
Johnson sworn in at 2:38
Let me know when you decide to thrown in the towel
It is what it is, and it’s murder most foul
What’s new, pussycat?
What’d I say?
I said the soul of a nation been torn away
And it’s beginning to go into a slow decay
And that it’s 36 hours past Judgment Day
Wolfman Jack, he’s speaking in tongues
He’s going on and on at the top of his lungs
Play me a song, Mr. Wolfman Jack
Play it for me in my long Cadillac
Play me that “Only the Good Die Young”
Take me to the place Tom Dooley was hung
Play “St. James Infirmary” and “The Port of King James”
If you want to remember, you better write down the names
Play Etta James, too
Play “I’d Rather Go Blind”
Play it for the man with the telepathic mind
Play John Lee Hooker
Play “Scratch My Back”
Play it for that strip club owner named Jack
Guitar Slim going down slow
Play it for me and for Marilyn Monroe
Play “Please Don’t Let Me Be Misunderstood”
Play it for the First Lady, she ain’t feeling any good
Play Don Henley
Play Glenn Frey
Take it to the limit and let it go by
Play it for Karl Wirsum, too
Looking far, far away at Down Gallow Avenue
Play tragedy, play “Twilight Time”
Take me back to Tulsa to the scene of the crime
Play another one and “Another One Bites the Dust”
Play “The Old Rugged Cross” and “In God We Trust”
Ride the pink horse down that long, lonesome road
Stand there and wait for his head to explode
Play “Mystery Train” for Mr. Mystery
The man who fell down dead like a rootless tree
Play it for the Reverend
Play it for the Pastor
Play it for the dog that got no master
Play Oscar Peterson
Play Stan Getz
Play “Blue Sky”
Play Dickey Betts
Play Hot Pepper, Thelonious Monk
Charlie Parker and all that junk
All that junk and “All That Jazz”
Play something for the Birdman of Alcatraz
Play Buster Keaton
Play Harold Lloyd
Play Bugsy Siegel
Play Pretty Boy Floyd
Play the numbers
Play the odds
Play “Cry Me A River” for the Lord of the gods
Play Number 9
Play Number 6
Play it for Lindsey and Stevie Nicks
Play Nat King Cole
Play “Nature Boy”
Play “Down In The Boondocks” for Terry Malloy
Play “It Happened One Night” and “One Night of Sin”
There’s 12 Million souls that are listening in
Play “Merchant to Venice”
Play “Merchants of Death”
Play “Stella by Starlight” for Lady Macbeth
Don’t worry, Mr. President
Help’s on the way
Your brothers are coming, there’ll be hell to pay
Brothers? What brothers? What’s this about hell?
Tell them, “We’re waiting, keep coming”
We’ll get them as well
Love Field is where his plane touched down
But it never did get back up off the ground
Was a hard act to follow, second to none
They killed him on the altar of the rising sun
Play “Misty” for me and “That Old Devil Moon”
Play “Anything Goes” and “Memphis in June”
Play “Lonely At the Top” and “Lonely Are the Brave”
Play it for Houdini spinning around his grave
Play Jelly Roll Morton
Play “Lucille”
Play “Deep In a Dream”
And play “Driving Wheel”
Play “Moonlight Sonata” in F-sharp
And “A Key to the Highway” for the king on the harp
Play “Marching Through Georgia” and “Dumbaroton’s Drums”
Play darkness and death will come when it comes
Play “Love Me Or Leave Me” by the great Bud Powell
Play “The Blood-stained Banner”
Play “Murder Most Foul”
Bob Dylan
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Não é por nada

Uma anedota:

Um sobrevivente de Auschwitz morre, chega ao céu e conta a Deus uma anedota sobre o Holocausto. Deus comenta: «Isso não tem piada.» Responde o sobrevivente: «Ah, tinha de ter estado lá.»

Uma notícia:

«O ministro Luís Filipe Castro Mendes considerou que o forte de Peniche trará um “turismo cultural muito importante” e que os números das visitas a este tipo de monumentos mostram que “existe um turismo especializado e que a visita a um Museu da Resistência e da Liberdade terá como é a visita a museus idênticos que há por esse mundo e lugares de memória, desde Auschwitz a outros.”»

Longe de mim sugerir ao senhor ministro da Cultura o mesmo: ter experimentado Auschwitz e Peniche para perceber a diferença (no grau, na natureza, na ordem de grandeza, etc.) Até porque, objectivamente, o senhor ministro não comparou coisíssima nenhuma. Certo. Mas convém não dar ares de leviano. Convém ter algum cuidado com os contextos subjacentes ao que se diz. Não é por nada.

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Miguel Pedro Sousa Marques Lopes Tavares

Agrada-me a divulgação televisiva de interrogatórios judiciais em prime, middling ou off-peak time? Não.

A divulgação dos interrogatórios roça o voyeurismo? Roça.

A divulgação dos interrogatórios constitui um crime? Provavelmente, sim.

Tratando-se de um crime, a divulgação dos interrogatórios, com o devido tratamento jornalístico, pode, ainda assim, justificar-se? Depende do processo e do tratamento jornalístico.

Se estiveram em causa crimes de corrupção e conexos que tenham prejudicado a res publica, desprestigiado a classe política e abanado os fundamentos do Estado de Direito, poderá o interesse público, o dever de informação e a liberdade de imprensa, enquanto direitos fundamentais consagrados nos artigos 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa, sobrepor-se ao direito à reserva da intimidade da vida privada e ao direito à imagem, protegidos constitucionalmente no n.º 1 do artigo 26.º da mesma Constituição? Na qualidade de indigente não-constitucionalista, penso que sim.

Podemos visionar a peça jornalística da SIC e unicamente concluir, ou dela retirar, a existência de uma flagrante e «nojenta» violação do disposto no número 2 do artigo 88.º do Código do Processo Penal? Podemos, da mesma forma que podemos achar que The Love Song of J. Alfred Prufrock é um divertido poema sobre o lamento de um procrastinador que não consegue pedir em casamento a sua amada, às voltas com uma overwhelming question; ou que Moby Dick relata as andanças de um baleeiro dirigido por um valente capitão, levemente lelé da cuca; ou que o The Catcher in The Rye é uma comédia sobre um puto de 16 anos que disfarça a queda para o ócio e o enjoo à instrução com supostas perturbações mentais; ou que Bartleby, The Scrivener narra as desventuras de um ardiloso calão.

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Se num dia de Primavera um espertalhão

A 6 de Setembro de 2014, a propósito de um evento de exaltação do candidato babush onde o senhor João ‘não consegui à primeira nem à segunda’ Botelho se referiu amiúde «ao Costa e ao Zé Sá Fernandes», escrevi: «a trupe da cóltura ainda não se deu conta de que não vai poder esperar muito do doutor Costa quando este ocupar o alopécio cargo. A conclusão é trágica: a aritmética não quer nada com a Cultura.»

A 6 de Setembro de 2014, Portugal vivia ainda sob o jugo do terrível doutor Passos Coelho. O doutor Costa, vá-se lá saber porquê, acalentava ganhar as eleições. Na sua triunfal marcha rumo à glória, beberricava na teta da ilusória generosidade da intelligentsia portuguesa, nidificada no Portugal aparente da prodigalidade dissimulada do «político de esquerda». Asinus asinum fricat. Centeno? Ninguém o era. Cativações? Um mistério. Jornada de luta nas matas? Que ideia absurda. Tancos? Uma fortaleza inexpugnável.

Passados três anos, sete meses, uma derrota eleitoral, um regime austeritário transgénero e um novo conceito de carga fiscal, o doutor Costa espantou-se. Vá-se lá saber porquê.

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Facemirror

A vastíssima população humana que investe horas do seu dia-a-dia no Facebook – do hipster que quer dar conta do brunch que lhe esvaziou a carteira e conspurcou a barba, à mãe com o «bebé mais bonito do mundo», passando pela boazona que pela quinquagésima vez avisa estar solteira (leia-se disponível para consumo) durante umas férias em Punta Cana, e acabando nos que às segundas, quartas e sextas denotam horror ao Face (petit nom), mas às terças, quintas e fins-de-semana o utilizam para difundir urgentíssimas convicções ou para encher o ego – espantou-se com o facto de a rede social presidida por uma criança de caracóis ser palco de patifarias de vária ordem, supostamente violadoras do difuso conceito de «privacidade» (difuso no ecossistema facebookiano, entenda-se).

Mal comparado, a coisa equivale a soprar um boato no ouvido de uma comadre coscuvilheira encartada e, no dia seguinte, estofar-se de indignação porque a notícia veio a lume. E repare-se: a culpa nunca ou raramente é da comadre.

Quem procura o recato ou quem tem mais que fazer, estará por esta altura a borrifar-se para o caso e considerará esta polémica uma sonsice pegada. Por uma de duas razões: ou porque convive bem com as «quebras de privacidade» (o pouco que publicou é irrelevante e as investidas das Cambridge Analyticas parecem-lhe risíveis), ou porque pura e simplesmente não põe lá os pés.

Está no ADN do Facebook escancarar existências, na sua generalidade tristes? Não. Está no ácido desoxirribonucleico dos seus utilizadores. Os mesmos que agora se queixam mas não largam o circo. Fim de conversa.

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O que faz falta é animar a malta

Para quem duvidasse da existência de matérias vulneráveis à dúvida não obstante o elevado grau de pureza da irrefutabilidade cientifica, eis a resposta: no grande fórum mundial para a discussão de matérias lusitanas e, en passant, da humanidade (Prós & Contas) debateu-se há semanas a grave «problemática das vacinas».

A única criatura a pôr em causa aquela que é provavelmente a maior história de sucesso da medicina na erradicação (ou redução para níveis, digamos, aceitáveis) de doenças tradicionalmente fatais (a ponto de nos permitir identificar historicamente uma era pré e pós-vacinal pela contagem de milhares de óbitos), fez saber o seguinte: dos cinco filhos que tiveram a sorte de ter um pai terapeuta do biomagnetismo que lê estudos, a «mais nova» não foi vacinada. Foi uma opção. Isso mesmo: uma opção.

Salvo uma referência a correr por parte de um dos paineleiros, abafada por uma moderadora capturada pelo magnetismo do terapeuta, ninguém pareceu interessado em reparar que a opção de não vacinar um dos filhos por parte do terapeuta do biomagnetismo que lê estudos, para além de estúpida, assenta no mais ultrajante dos egoísmos: beneficiar da «opção» certa (leiam comigo: v-a-c-i-n-a-r) tomada ao longo do tempo pela esmagadora maioria dos progenitores (actuais e passados), que permite hoje ao terapeuta do biomagnetismo que lê estudos, e à prole do terapeuta do biomagnetismo que lê estudos, viver num ambiente epidemiologicamente seguro.

Não vejo, por isso, como poderá o Prós & Contras passar ao lado de um alargado debate sobre o biomagnetismo. Um claro problema de saúde (mental) pública.

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Agora é que é

Depois de ter ficado «esgotado, mas alegre» com o último livro da trilogia As Areias do Imperador, Mia Couto classifica novo livro como o seu maior desafio enquanto escritor.

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Tudo maluco

O que há a dizer sobre o travel jacket Baubax 2.0 (com espaço para uma garrafa, uma lata, um estojo de óculos, uma caneta Apple, um tablet, uma mantinha, uma almofada insuflável, luvas extensíveis, um par de tampões para os ouvidos e uns auriculares) ou sobre o reMarkable paper tablet (um tablet que replica a sensação de escrever sobre papel, e que se dirige a quem não está na disposição de utilizar um bloco de notas convencional apesar de gostar de escrever num bloco de notas convencional)?

Pela parte que me toca, acho que se justifica uma acção de crowdfunding que venha a materializar a produção de um Shetland tweed com interstício tecnológico nas suas fibras que permita, pela aproximação dos alvos, teletransportar nerds, techies, geeks e coninhas para Marte (devidamente apetrechados com os travel jackets, claro.)

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The dude abides

O doutor António Mendonça Mendes é um homem feliz. Como homem feliz, transpira, entre outras coisas, tranquilidade. O ar cândido com que disse «nós nem temos de deixar tudo para a última hora nem temos de utilizar tudo no primeiro dia, temos de utilizar ao longo do tempo» (uma frase, desde logo, a roçar prazenteiramente o ininteligível) evidencia uma atitude despreocupada perante a vida em geral, e as intendências que lhe foram parar ao colo em particular.

O facto de o Estado levar cerca de seis meses a acertar as contas com os contribuintes, retendo dinheiro que não lhe pertence, não o comove. Estou, aliás, em crer que o doutor António Mendonça Mendes toma o exercício como um divertimento: que razões levam os velhacos dos contribuintes a querer submeter o mais rapidamente possível «o modelo três»? No conforto do seu duplex respaldado com o ordenadinho que os apressados lhe pagam, o doutor António Mendonça Mendes coloca todas as hipóteses: será avareza, mesquinhez, gulodice, obsessão com portais, existências vazadas? Um passatempo encantador.

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Deus salve os nossos governantes

A acção de limpeza das matas que mobilizou todo o governo de Portugal, foi uma aposta ganha. Veio ratificar a ideia de que o espírito colectivo substitui o critério moral (e abstracto) pelo critério histórico, o qual tem por base a consagração dos factos consumados. A difusão de imagens pela espectacular TDT, foi determinante. Nada ficou como dantes. A história é recente, mas é história. E factos são factos.

O senhor Tomé Azevedo, habitante de Nespereira (Cinfães), viúvo, reformado e proprietário de uma courela herdada, a que se refere carinhosamente como «uma herda», não conseguiu conter o vigor reactivo que a imagem do doutor Castro Mendes, actualmente a debater-se com uma ciática excruciante, lhe provocou. «Ver o senhor ministro a pôr comida na boca de uma ovelha, tocou-me. Daí a limpar as matas, foi um passo», relata o senhor Tomé, derrubando inadvertidamente a chávena de chá de ameixa preta que o congestionamento do seu particular IC19 tem ultimamente recomendado, dada a constante excitação em que tem andado.

Também Alberto Morais, residente em Mouraz, gerente de uma taberna em Vila Nova da Rainha e de dois pubs na zona metropolitana de Tondela, conhecido na região como o «Manuel Reis das Beiras» pelo incansável e desinteressado trabalho de dinamização nocturna e cultural levado a cabo na década de 90 (no virar do século veio a dedicar-se à pastorícia dada a experiência adquirida), não resistiu ao visionamento do doutor Costa de gadanha hi-tech na mão e camuflado xadrez no tronco: em poucos minutos, reuniu as ferramentas e atacou o matagal.

Ofélia Brites e Julieta Brites, irmãs e eternas solteiras de Unhais-o-Velho, há anos entregues ao sono bestial do enfartamento senil, não acreditaram, num primeiro momento, no que estavam a ver. Mas depressa se convenceram: a doutora Van Dunen amanhava o silvado como há muito não viam. Pela subtileza competente dos gestos, logo ali perscrutaram a imagem da saudosa mãe, grande referência moral que as ensinou, entre outras coisas, a dissuadir as investidas do macho-alfa pela permanência do buço. Em poucas horas, reuniram a vizinhança (duas cabras) e rumaram aos terrenos.

Mais a sul, o testemunho de Bernardino Quarenta não deixa margem para dúvidas. Ele e a mulher, Josefa Tirapicos, que em tempos ficou conhecida na região por ter cantado uma modinha aos microfones da TSF, num dos périplos do grande Fernando Alves pelas profundezas da pátria, andavam desmotivados, acabrunhados – nas palavras do próprio: assacanados. Septuagenários, vivem no sopé da Serra d’Ossa isolados do mundo, apesar da luxuriante companhia de uma pensão de reforma a bater os trezentos e cinquenta euros. Não fosse a leitura, há cerca de dois anos, do Alentejo Prometido, magnus opus de Henrique Raposo oferecido por um dos filhos na concorrida visita bienal à casa dos pais, provavelmente já não estariam do lado de cá. Mas a vida continuava a oferecer resistências. A reportagem da equipa ministerial a limpar matas, foi um game changer. A palavra ao senhor Bernardino: «Lembro-me de ter dito à minha Zefa: porra, mulher, do que é que estamos à espera!? Andamos p’rá ‘qui aos caídos e os nossos governantes naquele esforço… Pega já nas enxadas, ca*****!» Reencontraram o sentido da vida.

Na Bemposta, junto a Odemira, Amândio Saturnino, mais conhecido pela alcunha «o pilha-galinhas», pensionista de vocação e avicultor por opção, proprietário de uma herdade com 0,01 hectares onde residia rodeado de arvoredo desgovernado, ficou agradavelmente perplexo. «Ver o altruísmo daquela gente foi para mim uma inspiração. Chorei como há muito não chorava. Até assustei os cães.» A estratégia do senhor Amândio foi mista e aguçada: para além do esforço de braços, soltou os galináceos e armou-os sapadores. Serviço limpinho.

No Algarve, em Marmelete (perto de Monchique), o tumulto alastrou-se a diversas habitações. Em pouco mais de meia-hora, uma dúzia de pequenos agricultores, mas grandes rústicos, juntou-se no adro da igreja, envergando tochas, foices, dois exemplares da Constituição da República Portuguesa e uma Bíblia. Imolou-se um gato – ritual bastante apreciado na região – e gritou-se «Às matas!» Não sobrou um tufo para contar a história.

Mais a leste, em Balurcos, a sul do Parque Natural do Vale do Guadiana, o testemunho de Felizarda Mortágua, 68 anos, é ilustrativo: «Lembro-me perfeitamente daquele dia: tinha acabado de montar o televisor 4k com ligação à internet para passar a ver o The Art Channel. Eu e o meu marido ficámos perplexos. Ainda pensámos que fosse do efeito da qualidade da imagem, sim que o 4k é uma maravilha, mas não. Ficámos, de imediato, motivadíssimos. O meu marido disse ‘vês como se faz, Felizarda?’ ao que respondi, meio envergonhada, ‘não fazia ideia, Manel’. Como diz o povo, e com razão: nunca é tarde para aprender.» É comummente aceite na aldeia que o dia 24 de Março marcou as vidas de quem ali mora. Há uma petição para o tornar feriado.

Não há, pois, como menosprezar o domínio do «simbólico» e o poder da «comunicação». Se vos disseram que é reles propaganda (descarada, inútil, dispendiosa), não liguem. Estarão na presença de inorgânicos.

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And especially

«…and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people’s hats off…»

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