O Rio de Janeiro continua lindo

Vai longo o seriado de meretrício intelectual que a generalidade da nossa intelligentsia esquerdista, num tom ora pesaroso, ora indignado, decidiu levar à cena sob a batuta do samba Dilma, querida, que golpada, hein?

A argumentação atingiu um nível que tolera bem o epíteto «medíocre», oscilando entre o condescendente («ora, ora, no passado todos fizeram o mesmo»), o diferenciador («os que a acusam são piores do que ela») e o absolvidor («o que Dilma fez não é crime.») O corolário deste arrazoado barato seria, na prática, aceitar como admissível mascarar as contas públicas de um país («punível» única e politicamente nas urnas) e bloquear todo e qualquer processo de impeachment enquanto subsistisse nos hemiciclos uma percentagem (a fixar em portaria) de congressistas ou senadores indiciados por corrupção.

Parece não valer a pena lembrar que o PT foi o campeão dos pedidos de impeachment; que este processo, como os anteriores, seguiu escrupulosamente as regras constitucionais (não houve golpe coisíssima nenhuma); que muitos dos que, agora, «desculpam» Dilma, são os mesmos que, no passado, rasgaram as vestes quando um longo consolado de governos «neoliberais» ou «pseudo-socialistas» gregos, fizeram o mesmo com a ajuda da Goldman Sachs; muito menos reforçar que o impeachment é um instrumento político que serve para apurar a responsabilidade, por grave delito ou má conduta no exercício de funções, de quem desempenha altos cargos da nação (não exige, nunca exigiu, um crime de sangue ou um outro qualquer enquadrável numa «moldura penal»). E será totalmente inconsequente sugerir que este processo pode vir a ser vital na composição de um esquisso de consciência ética que contribua para estancar a sem-vergonhice de uma casta de políticos que pelo voto se acham legitimados em recorrer a qualquer meio para alcançar os seus fins.

Para desempoeirar o ambiente e deitar abaixo as grilhetas que impedem diálogos abertamente francos, devíamos escolher a verdade em detrimento de uma confortável omissão: a de estarmos na presença de um prosaico caso de trincheira ideológica. Se Dilma fosse uma Maria Luis Albuquerque «neoliberal», pró-germânica e amiga do «rodinhas nazi», a esquerda em peso estaria vergada à infinita rectidão, legalidade e justiça do instituto do impeachment.

Será o sr. Temer de outra estirpe? Talvez não. Com ou sem Dilma, esta discussão é, acima de tudo, fútil. É óbvio que o impeachment não salvou o Brasil de nada. Mas teve o (pequeno) mérito de fazer abanar uma cultura política que há muito deixou aninhar no seu colo o compadrio, o amiguismo, as relações malsãs entre o poder político e o poder económico, com o PT na vanguarda desta perversão.

Standard

Some girls are bigger than others

A forma como a indignação e a irritabilidade tomaram de assalto a fácies enojada de um Pedro Marques Lopes pré-apopléctico, em plena SIC Notícias, despertou a curiosidade e interrompeu a marcha triunfante que encaminhava este contribuinte líquido para o sono dos justos. Que degradação moral tinha voltado a colocar o comentador naquele estado? Tinha sido a entrevista do juiz Carlos Alexandre. Resultado: voltar a este espaço para exercer, uma vez mais, a minha magistratura de influência.

Se gostei da entrevista do juiz Carlos Alexandre? Não, não gostei da entrevista do juiz Carlos Alexandre. Não gostei do tom e entendo, se calhar pobremente, que um juiz não deve expor-se daquela maneira: pseudo-descontraída, «franca» e «pródiga», pontuada de indirectas sobre «causas próprias.»

Também não acho que a entrevista tenha sido determinante no juízo que detractores, simpatizantes, amigos e o Pedro Marques Lopes fazem de Carlos Alexandre, o juiz. Os que visceralmente o odiavam, ou os que simplesmente antipatizavam com a personagem (é o caso de Pedro Marques Lopes), continuaram a desprezar o «saloio de Mação.» Os que o amavam e viam no homem um oásis de seriedade, continuaram a amar o «intrépido juiz.» E os que se estavam nas tintas para os estados de alma de juízes e para o conhecimento, de facto, do homem por detrás da beca (é o meu caso), continuaram adeptos do marimbismo que estes incidentes suscitam.

Mas há uma particularidade que importa sobrelevar. Posso não ter gostado da entrevista do juiz Carlos Alexandre, mas posso desde já assegurar que, no que toca ao desconforto, à inquietação e ao desprazer, a entrevista do juiz Carlos Alexandre foi um passeio no parque quando comparada com as entrevistas de José Sócrates – o elefante-engenheiro que marcou presença em todos os cenários de Mação, por onde o juiz Carlos Alexandre se entendeu passear.

No campeonato do desassossego, as respostas trapalhonas, contraditórias, repletas de pequenas mas evidentes falsidades de um homem que foi, durante seis anos, primeiro-ministro do meu país e decidiu explicar a nebulosa de casos, esquemas e relacionamentos sinistros em que se viu implicado, envolvendo somas de dinheiro incomportáveis com os rendimentos do próprio, colocam as entrevistas de José Sócrates a milhas de distância da do juiz Carlos Alexandre.

Nunca vi em Pedro Marques Lopes, ou nos que facilmente se abespinham com o «estado da justiça», o mesmo tipo de incómodo, preocupação ou tremendismo quando altos dignitários da nação decidiram exercer em prime time autênticas sessões de harakiri, convencidos, como diria o dr. Costa, das «suas verdades» e da infinita capacidade do povo ignaro engolir meia-dúzia de patranhas.

Se coloquialmente nos vêm dizer «coitado, o homem pode ser inocente, o dinheiro pode mesmo ser de um amigo que durante uns aninhos lhe passou para as mãos largas quantias em numerário e um apartamento em Paris», seria de esperar que também nos dissessem «coitados, o processo é tão complexo e crescentemente invadido por novos dados, que provavelmente estará aí a razão do atraso.» Mas não. Em certos comentaristas, que autodidactamente tiram licenciaturas em direito e mestrados em sistemas judiciais, vamos continuar a assistir a esse floreado, desequilibrado e enviesado.

Durante muito tempo, Pedro Marques Lopes encheu a boca, aos pulos (notável esforço acrobático), da «presunção da inocência», da mesma forma que agora, como antes, descarta sumariamente qualquer «presunção de competência» ou «de boa-fé» relativamente a juízes e magistrados do Ministério Público. À «presunção da inocência»: tudo. À «presunção de um trabalho sério»: nada. «A justiça colapsou», escreve Pedro Marques Lopes. Nem mais.

Standard

iCondemn

Na vara do tribunal unipessoal onde acumulo as funções de juiz, meirinho e advogado de acusação, acabo de condenar o intelectual at large Rui Tavares a escrever mil vezes no seu caderninho de anotações a frase «não voltarei a omitir factos de modo a obter dividendos.»

A condenação acontece no dia seguinte à publicação de um artigo de opinião cujo título («Uma pouca-vergonha»), ao contrário do que parecia indicar, não se ocupava do preço das sardinhas mas da indignação de que foi acometido Rui Tavares depois de se ter debruçado, sem cair, sobre «o caso Apple».

Rui Tavares fez uma coisa feia, daí a condenação: da primeira à última linha do artigo, esqueceu-se de referir o que deu a Apple em troca desde 1980 (ano em que se instalou em Cork.) Quem lê o artigo e não conheça a história, poderá chegar à conclusão de que a Apple, com a conivência do estúpido do governo irlandês e nas barbas da ingénua União Europeia, foi ali roubar 13 mil milhões de euros às «escolas e hospitais, jardins e bibliotecas, pensionistas e desempregados, à ciência e às energias renováveis» (sic). Pior ainda: ao «investimento público e [prepare-se, caro leitor, vem aí a parte mais divertida] para o estímulo ao emprego.» Para o «estimulo ao emprego»?

Em 1980, a Apple abriu uma fábrica em Cork, na Irlanda, empregando 60 pessoas. Trinta e quatro anos depois (2014), a Apple empregava em Cork cerca de 4.000 pessoas e era indirectamente responsável por mais cerca de 2.500 empregos. Até 2017, a Apple estima aumentar para 5.000 o número de empregados directos na Irlanda.

Estão a ver aquela coisa da globalização? Estão a ver aquele fenómeno caracterizado pela livre circulação de pessoas, mercadorias e conhecimento, que tem conduzido à deslocalização de centros tecnológicos e de produção do primeiro mundo para o segundo e terceiro mundos, com nefastas consequências nos índices de emprego e crescimento económico do primeiro? A Irlanda – país onde exercem funções políticos e empresários que felizmente mantêm intactas as faculdades intelectuais clássicas – entendeu que podia e devia reverter essa tendência, atraindo investimento externo, privado, de dimensão adulta e tecnologicamente avançado. Para tal, assumiu, de forma legítima e soberana, um trade-off: impostos vs. emprego + formação + qualificação. O resultado está à vista: a economia irlandesa cresceu 26% em 2015. Em 2012, a taxa de desemprego atingia os 15%. Hoje, está nos 7,8%.

Seria bom que o intelectual at large Rui Tavares expusesse todos os factos, independentemente de concordarmos ou não com as suas conclusões (até podemos, no fim, juntar indignações.) Um verdadeiro intelectual sabe que tem esse dever.

Standard

De como glosar um anúncio televisivo

Se um desconhecido lhe espetar uma faca nas costas e gritar Allahu Akbar! isso é…loucura / desespero / alcoolismo / depressão / alergia aos fenos / uma tentativa falhada de fazer amizade / uma partida de Halloween / o lado negro do neoliberalismo / uma técnica de venda da ICEL / culpa do Durão Barroso / alguém que o confundiu com o Passos Coelho / uma forma revolucionária de tatuagem.

Standard

E o tema é: moda

Qualquer pessoa que acumule consciência da sua existência neste calhau e perceba o alcance dos vocábulos «democracia», «liberdade» e «tolerância», não pode deixar de sentir um calafrio quando observa as imagens de agentes da autoridade a obrigar uma muçulmana a despir a sua indumentária numa praia francesa (curiosamente, na Promenade des Anglais).

Tirando o efeito da ocultação do rosto (casos extremos e inaceitáveis da burka e do niqab) ou o da conflagração de matéria provocada por um cinto ou colete de explosivos, parece não haver um só argumento racional, equilibrado e justo, que sustente a prerrogativa do Estado poder obrigar um cidadão a despir determinada peça de roupa (podemos fazer a piada de que estaríamos abertos a uma excepção nos casos do sr. Goucha ou do sr. Herman José, but the jury should disregard such a jest). É assim que, em democracia, e de acordo com os valores que (a Ocidente) nos são queridos e que reputamos de superiores, funcionamos.

Dito isto, só uma pessoa muito distraída, um idiota útil ou um fanático às avessas poderá: a) pretender encerrar a discussão nos termos acima apresentados; b) desatender ao facto de o burkini, tal como a burka e o niqab, estar intimamente ligado ao carácter profundamente misógino de uma doutrina (religiosa e política) potencialmente totalitária, adoptada por um Islão «extremista» (vamos dar de barato que o Islão «moderado» existe e que os «moderados» do Islão «moderado» são absolutamente contrários às práticas extremistas dos «extremistas» do Islão «extremista»). Quer se goste, quer não se goste, o burkini, a burka ou o niqab são divisas de uma ideologia que promove a inaceitável humilhação e opressão das mulheres. É bastante provável que as mulheres muçulmanas adoptem aqueles dress codes contra a sua mais íntima vontade. E isso exige, desde logo, uma discussão.

Valerá a pena forçar a proibição de uma indumentária prescrita e imposta por uma lei religiosa discriminatória e subjugadora das mulheres, ou por encontrarmos nela uma carga simbólica que nos causa repulsa? Justificar-se-à desconsiderar uma aparente liberdade de escolha (usar o burkini), por estarmos muito certos de que de «liberdade» essa escolha pouco ou nada terá? Será útil e pertinente, aqui e agora, optar por uma política de «tolerância zero» em relação a toda e qualquer manifestação pública que aparente sustentar-se no extremismo e no fanatismo, deixando o Estado traçar, a régua e esquadro, algumas «linhas vermelhas»? Desta espécie de laicidade compulsiva poderá sair algo de bom?

Não sei. Temo que a resposta a todas estas questões seja «não.»

Standard

O jornalista vazado

Sobre o artigo do sr. Malheiros, percebo a crítica e compreendo o tom revoltado do Vitor Matos. Mas temo que tenha sido exagerado. O que está em causa não é a desonestidade ou a canalhice argumentativa do sr. Malheiros. É mais simples do que isso. Não há ali sombra de argumentos. Não há, por ali, uma molécula que seja do tipo de decência intelectual de que nos falava Karl Popper. Nem sequer uma partícula subatómica de lógica ou de racionalidade. É um simples caso de vacuidade que o sr. Malheiros «jornalista» entendeu preencher com uma estrondosa bagunçada de absurdidades, num tom ora paranóico, ora persecutório. A visão estreita do que é a liberdade jornalística, o gosto pela distopia e a ampla assunção da sua ignorância em matéria de concepções políticas, são a prova de que a parlapatice não preenche vazios: amplifica-os.

Standard

Beware

É provável que María de Lourdes Villiers Farrow, mais conhecida como Mia Farrow, actualmente com 71 anos, se tenha cruzado com Dorothy Veronica Langan, mais conhecida como Dory Previn, antes de 1968. Mas foi a partir deste ano que a existência destas duas mulheres convergiu dramaticamente. A história é conhecida. Em 1968, durante a rodagem do filme A Dandy in Aspic, Mia Farrow, então com 23 anos e no auge da sua graça, envolveu-se com o talentoso André Previn. Ao que tudo indica (bastava observá-la para perceber que sim), terá sido Farrow a seduzir Previn, na altura a dirigir a filarmónica de Londres. Tudo bem? Tudo mal: Previn estava casado com a não menos talentosa Dory Previn. Em 1969, Dory Previn acaba por descobrir o affair e, com a gravidez de Farrow ao rubro (gémeos), Herr Previn avança para o divórcio, consumado no ano seguinte.

O único efeito «positivo» desta traumática experiência, que levou Dory Previn ao internamento num hospital psiquiátrico (ela que já tinha tido um colapso nervoso em 1967), foi o facto de a ter inspirado a compor Beware of Young Girls, uma grande canção inteiramente «dedicada» à menina Farrow:

Beware of young girls
Who come to the door
Wistful and pale of twenty and four
Delivering daisies with delicate hands

Beware of young girls
Too often they crave to cry
At a wedding and dance on a grave

She was my friend, my friend
My friend, she was invited to my house
Oh yes, she was and though she knew

My love was true and no ordinary thing
She admired my wedding ring
She admired my wedding ring

She was my friend, my friend
My friend, she sent us little silver gifts
Oh yes, she did, oh, what a rare
And happy pair

She inevitably said as she glanced
At my unmade bed
She admired my unmade bed, my bed

Beware of young girls
Who come to the door
Wistful and pale of twenty and four
Delivering daisies with delicate hands

Beware of young girls
Too often they crave to cry
At a wedding and dance on a grave

She was my friend, my friend
My friend, I thought her motives were sincere
Oh yes, I did, ah, but this lass
It came to pass

Had a dark and different plan
She admired my own sweet man
She admired my own sweet man

We were friends, oh yes, we were
And she just took him from my life
Oh yes, she did, so young and vain
She brought me pain

But I’m wise enough to say
She will leave him, one thoughtless day
She’ll just leave him and go away, oh yes

Beware of young girls
Who come to the door
Wistful and pale of twenty and four
Delivering daisies with delicate hands

Beware of young girls
Too often they crave to cry
At a wedding and dance on a grave

Beware of young girls
Beware of young girls, beware

Por que razão estou eu a contar isto? Estive a ler a entrevista da doutora Catarina Martins (jornal Público 21.08.2016).

Standard

Claro que sim

É claro que a grande maioria dos que chacotearam e/ou repreenderam a prestação olímpica dos atletas portugueses, estarão interessadíssimos em debater e ver debatidas as mais diversas modalidades, nos grandes fóruns nacionais de discussão desportiva: Play-Off (SIC), Trio d’Ataque (RTP3), Desporto 24 (TVI), Golos (CMTV), O Dia Seguinte (SIC), Prolongamento (TVI), Pé em Riste (CMTV) ou Mais Transferências (TVI24).

Standard

CêGêDê

Enquanto Valter Hugo Mãe nos dava conta de que «Caxinas» o tinha salvado, e nós concluíamos que nos tinha tramado, decorria a novela «A Nomeação da Nova Administração da CGD» – uma produção repleta de maus actores, péssimos argumentistas e realizadores que nem para um episódio piloto de Os Batanetes serviriam.

Assim de repente, não me lembro de um processo tão tristemente cómico, com lugar a humilhação pública de algumas «personalidades» (a dra. Leonor Beleza deve abençoar o dia em que terá dito «contem comigo.») Pormenores aqui.

A culpa vai inteirinha para uma tutela trapalhona – mal preparada, presunçosa, titubeante – que mais uma vez colocou a meretriz CGD em péssimos lençóis.

Mas nada há a recear. Há anos que somos pastoreados no sentido de incorporarmos um dogma: o de que as instituições do Estado, por serem coisa pública, são infinita e virtuosamente bem administradas. Amém.

Standard

Smokey Bear

Proponho observarmos a campanha Smokey Bear, lançada em 1944 nos EUA, e agirmos em conformidade.

Em vez de Smokey Bear chamar-lhe-íamos «Fumacinha, o Coelhinho Perscrutador de Focos de Incêndio e Malandragem».

Para o poster oficial, em vez de um jovial, sadio e fascizóide casal de jovens escuteiros, poderíamos recorrer às minorias e à diversidade de género, preenchendo, desde logo, diversas quotas.

Na vez do Eddy Arnold, escolheríamos um dos artistas do regime, de preferência um que se debata com problemas de solvabilidade e/ou alcoolismo.

A RTP e a Antena 1 tratariam da divulgação.

Finalmente, o contribuinte pagaria mais uma importante campanha em nome do interesse público e do bem comum.

Standard

Ah humanity!

Na epígrafe do seu opus magnum Under The Volcano, Malcolm Lowry recorre a uma passagem da Antígona de Sófocles onde se exalta o homem, essa fantástica criatura:

Muitos prodígios há; porém nenhum
maior do que o homem.
Esse, co’o sopro invernoso do Noto,
passando entre as vagas
fundas como abismos,
o cinzento mar ultrapassou. E a terra
imortal, dos deuses a mais sublime,
trabalha-a sem fim,
volvendo o arado, ano após ano,
com a raça dos cavalos laborando.
 
E das aves as tribos descuidadas,
a raça das feras,
em côncavas redes
a fauna marinha, apanha-as e prende-as
o engenho do homem.
Dos animais do monte, que no mato
habitam, com arte se apodera;
domina o cavalo
de longas crinas, o jugo lhe põe,
vence o touro indomável das alturas.
 
A fala e o alado pensamento,
as normas que regulam as cidades
sozinho aprendeu;
da geada do céu, da chuva inclemente
e sem refúgio, os dardos evita,
de tudo capaz.
Ao Hades somente
não pode escapar.
De doenças invencíveis os meios
de escapar já com outros meditou.

(trad. Maria Helena da Rocha Pereira)

Por razões de economia, ou pelo que viria a escrever nas páginas seguintes, Lowry não transcreveu a 2.ª antístrofe, cujo início reza assim:

Da sua arte o engenho subtil
p’ra além do que se espera, ora o leva
ao bem, ora ao mal;

É um tema batido, eterno, inesgotável: o homem capaz dos maiores prodígios (técnicos, artísticos, etc.) mas também das maiores monstruosidades, com a natureza humana no papel de receptáculo e hibernáculo das sementes do mal, cujas radículas se tornam visíveis em momentos disruptivos, de grande incerteza e medo.

O Brexit – esse acontecimento longínquo – foi um desses momentos em que a face odiosa do homem deu um ar da sua graça. Esqueçam a desvalorização da libra, o potencial êxodo corporativo, a deslocalização dos centros de decisão, o fim da livre circulação de pessoas, a estapafúrdia reacção do inefável Juncker. O que verdadeiramente ensombrou os resultados do referendo britânico foi a forma absolutamente obscena como se classificou, julgou e condenou toda uma geração.

De uma assentada, a suposta solidariedade intergeracional eclipsou-se. O «humanismo», a «tolerância» e o «civismo» deram lugar à acrimónia, ao ressentimento e à desconfiança, num lupanar de almas cobardes e histéricas. Tudo indica que terão sido «os velhos» – egoístas, egocêntricos, ignorantes, xenófobos, pendurados nas mordomias do Estado Social – que, com o seu voto, «roubaram» o futuro de milhões de jovens.

Roula Khalaf, no Financial Times, deu conta da fúria: «Now their vision of the future has been taken away, the young are responding with rage.» Em local mais respeitável e ponderado – o Twitter… – houve uma criatura que escreveu «I know it’s not very ‘politically correct’ to say it out loud but in the wasteland of ruined Britain I am going to hunt and eat old people.» Bom proveito.

Ninguém esteve minimamente interessado em saber ou perceber o que levou «os velhos» a votar maioritariamente no Leave. Se estariam a pensar também no futuro dos filhos e dos netos. Ninguém esteve disposto a aceitar que, no meio dos «velhos», se encontrasse gente educada, informada e ponderada. Gente que, como prosaicamente se diz, «já viu muito e demais.» Gente que aprendeu as vantagens do cepticismo sobre as do optimismo e que, regra geral, tem uma perspectiva mais distendida e desassombrada sobre o passado, presente e futuro.

Ninguém, aliás, está muito interessado em perceber ou escutar «os velhos». Na sua impotência física e na sua caturrice abstrusa, «os velhos» tornaram-se uma excrescência, um saco de pancada preferencial de uma geração que «exige», «reclama» e «reivindica», recorrendo a todos os meios de que dispõe, numa imparável voragem de vaidade, presunção e ignorância. Absolutamente lamentável.

Standard

98%

O Sr. Salgueiro tem 94 anos. Vive no concelho de Montemor-o-Novo. Ocupação: cultivo e comercialização de plantas medicinais.

O Sr. Salgueiro tem por hábito terminar qualquer conversa, independentemente do tema, com um decreto. Exemplo:

Fulano: Este Verão está um calor que não se aguenta!
Beltrano: Não me diga nada. Ainda hoje de manhãzinha estive a tentar salvar a horta… Está tudo seco!
Fulano: E dizem que o calor está para durar.
Sicrano: É o tempo dele, compadres.
[pausa]
Sr. Salgueiro: Uma coisa é certa: 98% das pessoas não presta.

Outro:

Sicrano: As sardinhas, este ano…
Fulano: Uma merda!
Sr. Salgueiro: Não estão famosas, não.
Beltrano: Em compensação os meus pimentos estão um espectáculo!
Sicrano: A morte deles é com azeitinho do bom!
[pausa]
Sr. Salgueiro: Uma coisa é certa: 98% das pessoas não presta.

Outro:

Esposa de fulano: Vai-me lá buscar um botija de gás!
Fulano: Já vou, já vou!
Beltrano: Olha que eu não sei se o Ti Manel já recebeu vasilhames cheios.
Fulano: Já lá vou confirmar.
Sicrano: E a Simone Biles?
Beltrano: Espojou-se na barra.
[pausa]
Sr. Salgueiro: Uma coisa é certa: 98% das pessoas não presta.

Como dizem os anglo-saxónicos: a cautionary tale.

Standard

Noticias de um colete e da sua ministra

A semana passada, a dra. Constança Urbano de Sousa, ministra da Administração Interna, queixou-se de falta de solidariedade dos parceiros europeus, no seguimento do pedido de accionamento do mecanismo europeu de protecção civil (uma bolsa de meios disponibilizada pelos Estados membros da UE que permite que outros peçam ajuda em caso de necessidade.) «Esperava maior solidariedade», afirmou a senhora ministra.

Pacientemente, um porta-voz da UE explicou o óbvio ou, pelo menos, o razoável: «Neste momento, vários Estados-membros estão a enfrentar graves incêndios florestais ou perigo extremos de incêndio florestal, consequentemente a disponibilidade de aviões é muito limitada», destacando, logo a seguir, a «forte tradição de solidariedade e generosidade entre Estados-membros.»

Perante este episódio, gente mais sensível ou incauta estaria ao pulos para lembrar à dra. Constança Urbano de Sousa o caricato que é acusar a UE e os seus membros de «falta de solidariedade», lembrando, en passant, entre outras coisas, um facto singelo: entre 1986 e 2013, a nossa querida nação sorveu sofregamente cerca de 96 mil milhões de euros de fundos estruturais e de coesão (qualquer coisa como 9 milhões por dia em trinta anos). «Em matéria de solidariedade e generosidade estamos falados», diriam os exasperados.

Se me permitem: acharia desajustado um pinote que fosse. Compreendo a dra. Constança Urbano de Sousa. Suponho que seja pedir demais a um ministro de Portugal rejeitar uma narrativa secular, devidamente testada, de recorrente queixume contra «os outros», pelos infortúnios que nos têm calhado em sorte e/ou pelo incumprimento das respectivas soluções. O rol é longo e vem de longe: os espanhóis, os holandeses, os ingleses, as agências de rating, o calor, o Goldman Sachs, o sr. Dijsselbloem, a UE, o sr. Draghi (nos dias em que desliga o QE). E por aí fora.

Seria, também, de uma violência indizível, exigir que a dra. Constança Urbano de Sousa cometesse a imprudência de contrariar um dos mais relevantes diktats geringonciais: sempre que possível, culpar a Europa (coisa que, a seu tempo, poderá dar imenso jeito.)

Deixemos, por isso, a senhora ministra em paz.

Standard

O nosso Bobby Fischer

A vastíssima multidão de simpatizantes da solução governativa formalmente conhecida como «geringonça», não cabe em si de contente com a sua aparente solidez. Nada parece perturbar a agremiação liderada pelo dr. António ‘Pangloss’ Costa. Por alturas do caso «Olá, sou secretário de Estado e tenho um cartão Galp Milhas», houve gente que não escondeu o gozo íntimo decorrente do visionamento das reacções cândidas (para não reputar de fofinhas) de Jerónimo de Sousa e Catarina Martins. «Alô, alô Vidigueira: estão no papo!»

Subjaz a esta satisfação uma ideia que tem vindo a instalar-se no comentarismo indígena, certificada por politólogos, doutores de Coimbra e exóticos do ISCTE: a de que o dr. António Costa é uma grande cabeça e um estratega gigante. Uma versão moderna e rasteira do argumento ontológico de Anselmo: o dr. Costa é um grande estratega pelo facto de termos formulado a ideia de que o dr. Costa é um grande estratega.

Vítor Matos, em artigo publicado no Observador, chega mesmo a observar que o «mestre» disputa cinco partidas em simultâneo. Vindo de um jornalista habitualmente arguto e quase sempre sensato,  esta perspectiva diz muito da vitalidade da imagética laudatória entretanto produzida.

Não quero, de modo algum, melindrar ou pôr em causa a percepção dos justos. Daí que me disponha, desde já, a pedir desculpas pelo que se segue: onde o Vítor Matos vê um xadrezista notável, eu vejo um hábil malabarista (que jurou cumprir a promessa de não aumentar impostos, aumentado…er… impostozinhos); onde uns vislumbram a arte da grande estratégia, eu vislumbro um talento muito particular para o oportunismo político  (não é qualquer um que, em poucas semanas, passa de estrondoso vencido a primeiro-ministro de um país); onde outros observam espírito ecuménico e capacidade conciliadora, eu vislumbro queda para a celebração de negociatas partidárias impregnadas de um tacticismo que os despudorados flic-flacs à rectaguarda da dupla Martins & Sousa provam à saciedade. Aproveito, aliás, para assinalar o excelente contributo das alterações politico-comportamentais de Martins & Sousa para a credibilidade da política portuguesa e para a saúde da espinha dorsal das personagens em causa.

Vasco Pulido Valente cunhou a expressão «geringonça». Relembro outra, forjada por Sousa Bandeira, que se adequaria na perfeição ao que se observa: «pastel.»

Um pasteleiro queria
Fabricar um pastelão
E porque tinha de nada
Deu-lhe o nome de fusão

A acompanhar com cavaquinho e reco-reco.

Standard

Um pouquinho de vergonha na cara

Convinha que os dirigentes, apparatchiks e simpatizantes do partido que sustenta o actual governo e cerca de 50% dos governos constitucionais do Portugal pós-25 de Abril, evitassem o aproveitamento político da onda de incêndios para apontar o dedinho ao outro partido que sustentou o anterior governo e a outra metade dos governos constitucionais dos últimos quarenta anos. E vice-versa.

No que toca ao «ordenamento do território», PS e PSD deviam estar, como sói dizer-se, caladinhos. We have been watching you.

Standard

Hand in Glove

Antes de ir de férias, Pedro Marques Lopes escreveu isto no Diário de Notícias:

Reparei que muita gente não se exaltou com o emprego de Maria Luís Albuquerque ou o de Durão Barroso. Desta vez, pouca gente não se indignou com a conduta dos três secretários de Estado, e notou-se muito menos os habituais comportamentos de trincheira do que em casos de atuações sérias contra a ética ou mesmo contra a lei.

Não devo estar bem da cabeça. Ou, em alternativa, vivo num país diferente do país do Pedro Marques ‘O Durão Barroso Deixou-me À Beira De Uma Síncope’ Lopes. O que, não sendo verdade, implica que estou decididamente maluco.

Como foi público e notório, houve muitíssima gente exaltada com o emprego de Maria Luís Albuquerque e mais ainda com o de Durão Barroso (com direito a reacções além-fronteiras). As redes sociais – um excelente barómetro de exaltações – estiveram ao rubro. Por todo o lado se mastigou o assunto.

Aquilo que Pedro Marques ‘Vou Lavar a Boca Sempre Que Disser Durão Barroso’ Lopes escreveu é, simplesmente, falso. O que não deixa de ser curioso: o articulista foi o segundo mais excitado comentador do caso Barroso-Sachs, companheiro radiofónico do número um.

Mais: plantar Durão Barroso e Maria Luís Albuquerque neste caso é contribuir para saturar (mais ainda) o comentarismo luso com o seu artefacto retórico fétiche: a «invocação redentoro-salvífica.» Temos facto desagradável, obsceno ou embaraçoso? Invoca aí outro «equivalente» que o desvalorize por comparação ou mera companhia. Não é bem a mesma coisa? Não interessa: afinfa-lhe. Não há cão nem gato que não use e abuse deste mecanismo.

Que utilidade tem a análise comparativa das reacções populares nos casos de Durão Barroso, Maria Luís Albuquerque e Rocha Andrade? Obviamente, nenhuma. O Pedro Marques ‘O Durão É Um Tratante’ Lopes acha-a «curiosa» na medida em que parece evidenciar a tendência popular de vergastar os que, pelas suas acções, acabam a reflectir a comezinha fraqueza moral dos populares, esquecendo, pelo caminho, os verdadeiros tubarões (os que actuam «contra a ética ou mesmo contra a lei.») Uma belíssima treta.

O Presidente da comissão que reviu o Código do Procedimento Administrativo, Fausto Quadros, foi claro num caso que é claro: «se os secretários de Estados não pedirem para se afastarem de decisões que envolvam a Galp, todos os actos podem ser anulados em tribunal, por exemplo através de uma acção interposta por um concorrente da empresa.” E acrescentou: “a lei portuguesa nem é das mais exigentes a nível europeu e a lógica do legislador é que quem recebe uma prenda fica a dever um favor a quem fez a oferta.» Ao contrário do que Pedro Marques ‘Nem Um Carro Usado Compraria Ao Durão Barroso’ Lopes insinua, este caso não nos remete para um acesso populista de puritanismo ou para um inadequado quadro de assepsia num ambiente humano, invariavelmente falível e naturalmente imperfeito.

Não perceber que, hoje em dia, as democracias ou a res publica precisam do tranquilo mas exemplar cumprimento destes preceitos éticos como do pão para a boca, é não perceber nada. Não perceber que é o nacional-porreirismo do «podia ser pior» ou do «que mal é que faz?» ou do «toda a gente sabe que o homem é sério» que escancara a porta ao populismo das indignações gratuitas, é não perceber nada. Não perceber que não há éticas de primeira vs. de segunda, é não perceber nada.

Resta-me uma dúvida: qual seria a reacção do Pedro Marques ‘O Hans Gruber Ao Pé do Durão Barroso É Um Santo’ Lopes caso se viesse a descobrir que Maria Luís Albuquerque tinha viajado em lazer a expensas do litigante Santander Totta?

Standard

Arrogante? Uma cabeça!

Sobre o dr. Rocha Andrade, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, cito opinião anónima presente numa notícia do Observador:

…arrogante, como acontece a todos os tipos inteligentes.

Confirmo. Em 2012, quando recorri às urgências do Hospital do Espírito Santo por ter partido o V osso metacarpiano da mão direita, e depois de encaminhado «para a sala da esquerda», perguntei a um senhor que envergava bata se se tratava do médico ortopedista. A resposta, acompanhada de uma cara de pau certificada pela Ordem dos Médicos, foi «vê aqui mais alguém!?» Percebi, de imediato, que tinha sido acariciado pelo envolvente e enfático bafo da inteligência. Estava perante uma sumidade. Agradeci, em silêncio, a Deus.

De então para cá, tenho estado atento. Acumulei sinais e demonstrações suficientes para concluir que o colega fulano que disse o que disse ao Observador sobre o dr. Rocha Andrade, não só está certo como saberá, como eu, que este é um país carregado de gente inteligentíssima. É vê-los por aí: nas repartições públicas, nas televisões, nas escolas, nas empresas, nas academias, nos tribunais. Estou perfeitamente convencido de que, à excepção daquele pedaço europeu que vai de Calais a Banyuls-sur-Mer, passando por Hendaye e Point Saint-Mathies, não há na Europa progressista lugar mais favorecido pelo toque da inteligência.

Julgavam, caros leitores, que a arrogância era sinal de falta de educação, falta de formação e respeito ou, não raras vezes, uma forma primária de mitigar a impreparação técnica ou mascarar a ignorância? Deixem-me dizer-vos com toda a arrogância: burros!

Standard

Something is rotten

Aquilo a que temos assistido nos últimos dias, não deverá surpreender ninguém.

A tentativa de diabolização do povo britânico – convenientemente confundido com o idiota do senhor Farage – é parte da estrondosa e iminente «fuga para a frente» que a União Europeia se prepara para correr.

Digo «convenientemente» porque Juncker – a face «institucional» mais visível dessa malaise que há muito corrói aquilo a que pomposamente designaram de «o mais belo projecto político da história dos projectos políticos» – precisa de combustível para o próximo negócio da sua vida: provar ao mundo e aos «piquenos» que só o degredo e a humilhação os aguarda caso se atrevam a descarrilar. «Quem não é por nós, é contra nós.» Há que dar o exemplo.

A secundá-lo estão Merkel (*), o inefável Holland, Renzi e esse grande vulto chamado Tusk, por sua vez apoiados por laboriosos apparatchick, lestos em servir a causa. 

É esta laia de gente – mesquinha, arrogante, vingativa e por estes dias aflitíssima – que nos calhou em sorte e se prepara para pôr em prática a mais engenhosa táctica instigadora de repulsa desde que Iago sussurrou ao ouvido de Otelo «já que tens um tempinho livre, anda cá ouvir uma coisa.»

Não vai ser bonito.

(* Merkel proferiu hoje declarações que a afastam do ressabiamento, da petulância e da pequenez de outras personagens, revelando a fibra e a classe de um verdadeiro estadista: não invectivar um povo e um país que foi e continua a ser um parceiro e um aliado. Para já, uma lição.)

Standard